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Calvinismo Concorrência

Concorrência divina no calvinismo: o problema da determinação dos atos livres.

Introdução
É fato indiscutível, dentro do cristianismo, que Deus tem presciência, portanto teria o conhecimento de todos os eventos futuros de forma exaustiva, o que nos levaria ao seguinte problema: se Deus sabe infalivelmente o que determinado ser humano vai fazer amanhã, por exemplo, como esse ser humano poderia fazer diferente do que Deus previu? No entanto, na teologia reformada calvinista, o problema se agrava mais ainda, pois essa teologia prega que Deus sabe do futuro porque determina todos os atos futuros, oras, se Deus determina todos os eventos futuros, como pode existir livre arbítrio libertário(3)? Em outras palavras, uma vez que Deus determina o futuro, como o homem pode fazer diferente do que faz? Existe uma liberdade de fato? Ou é apenas ilusória? Para discutir esse problema apresentaremos uma explicação do concursus providencial divino de acordo com a teologia reformada. Esse artigo se demonstra necessário, principalmente, devido à escassez de trabalhos quanto a essa maravilhosa doutrina, que é a doutrina da providência, sendo o concursus uma parte muito pouco explorada dessa doutrina. O Dr. Heber Campos faz essa notável observação em seu monumental trabalho sobre a providência divina, ele diz “Não obstante a realidade da providência divina, tem havido um certo desprezo à doutrina da providência nas últimas décadas no mundo chamado cristão. Ela tem sido esquecida ou negligenciada nos ensinos de seminários e das igrejas” (CAMPOS, 2001, p.8) pois grande parte dos poucos materiais que se tem, tem sido superficiais, descritivos e afirmativos, onde são feitas afirmações de que Deus é soberano e a tudo controla e determina, ao mesmo tempo que afirmam que o homem é livre, mas poucos propõem uma forma de como conciliar essas duas afirmações, o que normalmente nos leva assumir um mistério. Assumir um mistério não é ruim em si mesmo, o próprio apóstolo Paulo assume que certas coisas, dadas a sua grandeza, são misteriosas (1 Co 2.7), no entanto, isso não é motivo para evitarmos uma análise das Escrituras, e, através da direção do Espírito Santo, propor uma tese genuinamente Bíblica e ortodoxa a respeito de um tema que é considerado misterioso. Nosso trabalho terá como fontes, as Escrituras Sagradas, os escritos do grande reformador João Calvino, a Confissão de fé de Westminster e os Cânones de Dort, exatamente nessa ordem de autoridade e prioridade, além das referências de algumas poucas teologias sistemáticas de autores signatários da teologia reformada calvinista. O objetivo do uso restrito de fontes, deve-se à proposta de ter uma doutrina da providência e concorrência que seja genuinamente calvinista, sem correr o risco de imputar a este autor um desvio temerário da doutrina reformada calvinista.

1 – O que é providência divina?

O reformador João Calvino ensina que a providência divina é o governo ativo de Deus sobre todas as coisas, se estende a tudo que foi criado, Deus, definitivamente controla, rege, sustenta, preserva e move cada evento, objeto e tudo o mais que se possa chamar de existente, como diz:

Portanto, que os leitores apreendam de início que não se chama providência aquela através da qual Deus observa passivamente do céu as coisas que se passam no mundo; ao contrário, é aquela pela qual, como que a suster o leme, governa a todos os eventos. Portanto, ela se estende, por assim dizer, tanto às mãos, quanto aos olhos. (CALVINO, S/D, p. 202)

A Confissão de fé de Westminster é mais precisa e didática quando diz:
Pela sua muito sábia providência, segundo a sua infalível presciência e o livre e imutável conselho da sua própria vontade, Deus, o grande Criador de todas as coisas, para o louvor da glória da sua sabedoria, poder, justiça, bondade e misericórdia, sustenta, dirige, dispõe e governa todas as suas criaturas, todas as ações e todas as coisas, desde a maior até a menor. (CFW, S/D, Cap V.I)

A doutrina da providência pode ser dividida nos seguintes elementos:

Conservatio que envolve a preservação da criação; Provisio, é o aspecto da providência que faz todas as provisões básicas para a vida das pessoas de forma natural ou sobrenatural; Directio, é o aspecto que trata de como Deus conduz as suas criaturas; Gubernatio envolve a direção de todas as coisas para o cumprimento dos propósitos previamente determinados; Retributio é o aspecto da providência divina que trata da punição dos pecadores, sejam eles justos ou injustos; Concursus envolve a idéia de cooperação de Deus e homens na realização de todos os atos, sejam bons ou maus, para a consecução de tudo o que Deus de antemão escreveu, embora não precise ser considerado mais um elemento da providência, mas sim um modo de Deus trabalhar.” (CAMPOS, 2001, p. 62)

1.2 – Provas Escriturísticas da providência divina conforme entendido pela doutrina calvinista

As Escrituras endossam, insistentemente, que a providência divina está sobre absolutamente tudo do que se pode considerar existência, seja inanimado (objetos mortos, mundo físico, leis da natureza), ou vivos irracionais (animais brutos), ou vivos racionais (anjos e homens):

Sobre tudo que existe:

Só tu és Senhor; tu fizeste o céu, o céu dos céus, e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto neles há, e tu os guardas com vida a todos; e o exército dos céus te adora. (Neemias 9:6)

Mas ao fim daqueles dias eu, Nabucodonosor, levantei os meus olhos ao céu, e tornou-me a vir o entendimento, e eu bendisse o Altíssimo, e louvei e glorifiquei ao que vive para sempre, cujo domínio é um domínio sempiterno, e cujo reino é de geração em geração. E todos os moradores da terra são reputados em nada, e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?(Daniel 4:34,35)

Nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade; (Efésios 1:11)

Sobre as leis da natureza, animais brutos e plantas:

Tudo o que o Senhor quis, fez, nos céus e na terra, nos mares e em todos os abismos. Faz subir os vapores das extremidades da terra; faz os relâmpagos para a chuva; tira os ventos dos seus tesouros. O que feriu os primogênitos do Egito, desde os homens até os animais; O que enviou sinais e prodígios no meio de ti, ó Egito, contra Faraó e contra os seus servos; O que feriu muitas nações, e matou poderosos reis: A Siom, rei dos amorreus, e a Ogue, rei de Basã, e a todos os reinos de Canaã; (Salmos 135:6-11)

Ele rega os montes desde as suas câmaras; a terra farta-se do fruto das suas obras. Faz crescer a erva para o gado, e a verdura para o serviço do homem, para fazer sair da terra o pão, E o vinho que alegra o coração do homem, e o azeite que faz reluzir o seu rosto, e o pão que fortalece o coração do homem. As árvores do Senhor fartam-se de seiva, os cedros do Líbano que ele plantou, Onde as aves se aninham; quanto à cegonha, a sua casa é nas faias. Os altos montes são para as cabras monteses, e os rochedos são refúgio para os coelhos. Designou a lua para as estações; o sol conhece o seu ocaso. Ordenas a escuridão, e faz-se noite, na qual saem todos os animais da selva. Os leõezinhos bramam pela presa, e de Deus buscam o seu sustento. Nasce o sol e logo se acolhem, e se deitam nos seus covis. Então sai o homem à sua obra e ao seu trabalho, até à tarde. Ó Senhor, quão variadas são as tuas obras! Todas as coisas fizeste com sabedoria; cheia está a terra das tuas riquezas.(Salmos 104:13-24)

Nenhum [pardal] cairá em terra sem a vontade de vosso Pai (Mateus 6.26)

… as aves do céu, vosso Pai celestial as alimenta (Mateus 6.30)

Governa sobre as nações:
O Senhor desfaz o conselho dos gentios, quebranta os intentos dos povos. O conselho do Senhor permanece para sempre; os intentos do seu coração de geração em geração. (Salmos 33:10,11)
Porque o reino é do Senhor, e ele domina entre as nações. (Salmos 22:28)

Sobre a vitória e derrota dos homens em suas empreitadas:
Porque nem do oriente, nem do ocidente, nem do deserto vem a exaltação. Mas Deus é o Juiz: a um abate, e a outro exalta. (Salmos 75:6,7)

Sobre a aparente sorte:

Os homens jogam os dados sagrados para tirar a sorte, mas quem resolve mesmo é Deus, o Senhor. (Provérbios 16.33)

Aqui, vale destacar que a crença judaica e apostólica no domínio absoluto de Deus sobre todos os acontecimentos era tão grande, que os mesmos jogaram os dados sagrados e tiraram a sorte para escolher o novo apóstolo: Então tiraram sortes, e a sorte caiu sobre Matias; assim, ele foi acrescentado aos onze apóstolos. (Atos 1:26). Os israelitas também tiraram sorte para descobrir o pecado de Acã (Josué 7.16) e também para dividir a herança entre as tribos (Josué 15.1-12), portanto, não há motivos para pensar que o versículo de Provérbios cap 16, vers 33 seria algum tipo de hipérbole poética, mas deve ser encarado em sua total literalidade, pois o testemunho da Escritura é claro que essa era a crença dos homens de Deus no passado.

Na proteção do seu povo:
Todas as coisas cooperam para o bem dos que amam a Deus (Romanos 8.28)

… vosso Pai sabe o que vos é necessário antes de vós lho pedirdes(Mateus 6.8)

Nascimento, vida e hora da morte:
Os teus olhos viram o meu embrião; todos os dias determinados para mim foram escritos no teu livro antes de qualquer deles existir.(Salmos 139.16)

Visto que os seus dias estão determinados, contigo está o número dos seus meses; tu lhe puseste limites, e ele não poderá passar além deles. (Jó 14.5)

Não serão apresentados mais versículos, pois consideramos, os apresentados, suficientes para estabelecer a verdade de que Deus tem o controle providencial sobre tudo.

2 – Concursus providencial divino

Também chamado de doutrina da concorrência divina. Teremos duas declarações aparentemente paradoxais, a saber:

1 – Todos os acontecimentos são determinados por Deus, inclusive as ações humanas.

2 – Os homens são livres.

A Confissão de fé de Westminster (CFW) nos diz:

Desde toda a eternidade, Deus, pelo muito sábio e santo conselho da sua própria vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas. (Seção III.I)

Posto que, em relação à presciência e ao decreto de Deus, que é a causa primária, todas as coisas acontecem imutável e infalivelmente, contudo, pela mesma providência, Deus ordena que elas sucedam conforme a natureza das causas secundárias, necessárias, livre ou contingentemente. (Seção V.II)

A primeira observação a ser feita é que é definitivamente um mito, que na teologia reformada calvinista, homens não gozem de liberdade, nessa teologia, o homem não só tem liberdade, como também é causa total de tudo que faz, mas também é afirmado que Deus controla, preserva e determina tudo. Trataremos sobre os tipos de liberdade mais à frente.

2.1 – Provas escriturísticas das declarações paradoxais

2.1.1 – Deus determina todas as coisas
Esse é um fato incontestável dentro das Escrituras Sagradas, no entanto, dado que já foi citado vários versículos que mostram um exaustivo controle de Deus sobre tudo, tentaremos não ser exaustivos nesse tópico:

Este é o propósito que foi determinado sobre toda a terra; e esta é a mão que está estendida sobre todas as nações. Porque o Senhor dos Exércitos o determinou; quem o invalidará? E a sua mão está estendida; quem pois a fará voltar atrás? (Isaías 14:26,27)
Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade. Que chamo a ave de rapina desde o oriente, e de uma terra remota o homem do meu conselho; porque assim o disse, e assim o farei vir; eu o formei, e também o farei. (Isaías 46:10,11)

– Deus determina o dia da morte: Visto que os seus dias estão determinados, contigo está o número dos seus meses; tu lhe puseste limites, e ele não poderá passar além deles. (Jó 14.5)

– Determina atos bons: Quem diz de Ciro: Ele é o meu pastor, e cumprirá tudo o que me apraz; dizendo também a Jerusalém: Sê edificada; e ao templo: Funda-te. (Isaías 44.28)

– Determina atos maus: O Rei, pois, não deu ouvidos ao povo, porque esta revolta vinha do Senhor. (1 Reis 12.15)
E, na verdade, o Filho do homem vai segundo o que está determinado; mas ai daquele homem por quem é traído! (Lucas 22:22)

A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de injustos;(Atos 2:23)

2.2.2 O homem é livre:

Eles escolheram seus próprios caminhos, e delicie-se com as suas abominações. Mas também vai escolher aflição para eles e enviar-lhes o que eles temem isso. Como ninguém respondeu quando eu chamei, quando eu falava, ninguém ouvia. Pelo contrário, o que era mau aos meus olhos e escolheu o que eu não gosto (Isaías 66:3-4).

2.3 – Discussão – Determinação de atos livres

Aqui está o ponto central do trabalho Como pode um ato ser livre e ainda determinado por Deus? A própria Confissão de fé de Westminster nos dá a solução: “Deus ordena que elas sucedam conforme a natureza das causas secundárias”, explique-se: Deus, que é a causa primeira, move (concorrência divina) cada criatura, que é a causa secundária de acordo com a própria natureza delas (preservação), pois Deus mantém todas as coisas existindo e preservando as propriedades com as quais ele criou (GRUDEN, 1999, p 152), como está escrito: Só tu és Senhor; tu fizeste o céu, o céu dos céus, e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto neles há, e tu os guardas com vida a todos;(Neemias 9.6), e em Jó 34.14-15: Se ele tem a intenção de retirar o seu espírito, tirar o fôlego da vida, toda a humanidade pereceria, a humanidade seria poeira! Explicando melhor peguemos o fogo como exemplo. O fogo queima, é de sua natureza queimar, Deus criou e preserva assim, então quando Deus move o fogo, ou energiza o fogo, o fogo não pode molhar, ele vai, inevitavelmente, queimar, a não ser que Deus, sobrenaturalmente, mude a natureza desse fogo, então ele deixará de ser fogo e será outra coisa, e assim fará o que a nova natureza puder proporcionar, Deus é a causa primeira e o fogo a causa segunda. Assim também, Deus move o ser humano de acordo com a natureza que lhe é próprio, portanto, racional, livre, consciente, logo, sempre que Deus move o homem, esse ato é livre por necessidade lógica, já que o homem é livre e Deus move de acordo com a propriedade da natureza.

O segundo ponto de argumentação é mais poderoso e clarificará mais a noção de liberdade dentro da determinação. Definiremos então o ato livre como sendo aquele ato que é voluntário, não coagido, ou seja, o ato que homem tem vontade de fazer e faz, esse ato é livre. A Confissão de fé de Westminster, já citada anteriormente, que diz que “nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas.”, explicando melhor, cada criatura e, em específico, os agentes livres, faz aquilo que sua natureza o constrange a fazer, sendo cada decisão tomada, um ato de sua própria vontade, nascida nele mesmo, mas energizada/movida por Deus. Deve-se rejeitar que o Homem decida por instinto, pois se assim o fosse, ele não seria diferente de um animal bruto, mas defendemos que cada Homem de fato entende, delibera e escolhe entre isso ou aquilo, como explica Calvino:

A divisão que usaremos será considerar duas partes na alma: o entendimento e a vontade. Entretanto, a função do entendimento é discernir entre as coisas que lhe são propostas, para ver qual há de ser aprovada e qual há de ser rejeitada; a função da vontade, entretanto, é escolher e seguir o que o entendimento ditar como bom, rejeitar e evitar o que ele houver desaprovado. (CALVINO, S/D, p. 195)

Peguemos o exemplo do homem em seu estado natural, o Apóstolo Paulo diz: “Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entende-las, porque elas se discernem espiritualmente”(1 Co 2.14) e , “Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem em verdade o pode ser” (Rm 8:7). Segundo o texto citado, o homem natural sequer entende as coisas de Deus, ele simplesmente não tem a opção de fazer diferente, mas sem dúvida tem a vontade de rejeitar a Deus por causa da sua natureza depravada, portanto, a não ser que Deus transforme essa natureza depravada em uma natureza regenerada, ele jamais poderá produzir frutos dignos de arrependimento, mas ele não é coagido a isso, não é forçado, como alguns objetores argumentam, a liberdade dele não foi tirada, é a condição dele que o coloca nesse estado, é a condição de depravado que o constrange a tomar atitudes que são pecaminosas, rejeitando a Deus, pois uma árvore ruim, produz frutos ruins (Mateus 7.18) e de uma mesma fonte não pode jorrar água doce e amarga e uma figueira não pode produzir azeitonas (Tiago 3,11.12), as atitudes do homem são determinadas pela sua natureza, pelo seu estado interior, seja depravado ou seja regenerado, seja ele nascido de novo ou um homem natural, como é dito: “se a raiz é santa, também os ramos o são” (Romanos 11:16). Aqui fica rejeitada a chamada liberdade libertária (liberdade irrepcepta), pois de uma mesma figueira não produz outro fruto a não ser figo e uma fonte não jorra dois tipos de águas diferentes, assim como o homem não toma dois tipos de decisões por não poder agir contra sua própria natureza, o homem é livre por tomar atitudes de livre vontade, não por ter opções ou por ter capacidade de fazer diferente, tudo que ele faz é de vontade própria, por isso é livre, no entanto o ato é certo, logo é determinado, uma vez que Deus move esse homem a tomar determinada atitude, sem o coagir, pois o homem embora movido, faz exatamente aquilo que a sua própria natureza o constrange a fazer. Isso quer dizer que o homem de fato escolhe fazer o que faz, ele delibera sobre isso, mas é movido por sua natureza, a escolher o que vai escolher. Também fica devidamente refutada a objeção comum de que a liberdade libertária é o pressuposto para a responsabilidade humana, pois se em estado de depravação total o homem é incapaz de entender o evangelho e portanto de tomar uma atitude diferente da rejeição a Deus, já que o mesmo sequer entende, o mesmo deveria não ser culpado de forma alguma por sua rejeição a Deus, isso transformaria o estado de depravação em um estado de salvação, pois culpa nenhuma poderia ser imposta ao homem natural e ninguém seria condenado, pois já que o poder de fazer diferente é o fator que torna o homem responsável pelos seus atos, o depravado jamais seria responsável.

O caso mais claro de que liberdade significa vontade, e não a capacidade de fazer diferente do que se faz, é o nosso estado no céu, já glorificados. Os objetores dessa doutrina costumam dizer que se não temos o poder de fazer diferente, nós seriamos robôs e Deus um ditador, ledo engano, pois se assim fosse, no céu Deus seria um ditador, já que a escritura é clara de que não haverá mais mal algum, nem mesmo pecado, ou seja, não pecaremos mais de forma alguma, não vai haver essa opção, mas isso torna Deus um ditador e o homem um robô? A resposta é não. No céu estaremos todos em um estado de regeneração total, que se chama glorificação, é o extremo oposto do homem natural, assim como o homem natural sequer consegue entender o evangelho e sem a regeneração divina jamais entenderá e desejará a Deus, assim também o homem no céu, jamais sentirá vontade de pecar, porque sua natureza glorificada, totalmente divina, o constrangerá a fazer sempre a vontade de Deus, quando for movido por este. No céu, seremos livres, porque teremos vontade, mas não faremos o contrário, porque agiremos conforme a nossa nova natureza, como está escrito: “Mas graças a Deus que, embora tendo sido escravos do pecado, obedecestes de coração à forma de doutrina a que fostes entregues. E libertos do pecado, fostes feitos escravos da justiça” (Romanos 6:17-18).

Além de uma causa interna (pois Deus, tendo contato direto com o espírito humano, age em nossa vontade, de dentro para fora, no nosso coração, por fim natureza) como falamos agora, as causas externas do decreto também movem o homem a um ato livre. Ao olharmos o livro de apocalipse, por exemplo, nós vemos que o decreto de Deus que assegura que nós seremos vencedores e que o mesmo resgatará sua Igreja, longe de ser uma causa para a perda de significado das nossas atitudes, é justamente o que nos motiva a seguir em frente e pregar mais ainda o evangelho, se as certezas dos acontecimentos através dos decretos divinos tornassem nossos atos sem significados (nos tornasse robôs), o livro de apocalipse seria um grande desperdício. A emissão de decreto não pode ser confundida com a execução do decreto, pois veja pela própria realidade, que foi a emissão do decreto da volta de Cristo e é justamente através da certeza que temos, que é estimulada em nós a vontade de livremente pregar, avançar, fazer a vontade de Deus, portanto, podemos dizer com tranquilidade, que o decreto é rígido, mas a ação da causa secundária é livre, e que o decreto é um motivador dos atos livres e um poderoso criador de significados e sentido aos atos livres dos homens.

3 – Erros a serem evitados

3.1 – O mover de Deus é causal, não é simultâneo

Um erro que pode se pensar é que Deus apenas coopera com o homem como causa parcial, e esse não causa o mover do homem, mas esse mesmo homem se move sozinho e simultaneamente com Deus, como causa parcial e não causada em sua vontade.
Rejeitamos essa tese. A Escritura diz em Hebreus 1.3 – “sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder”, Gruden comenta sobre a palavra sustentar:

A palavra grega traduzida por “sustentar” é “phero”, “sustentar, manter”. Ela é comumente usada no NT para dar a ideia de carregar algo de um lugar para o outro, como trazer um paralítico em uma maca até Jesus (Lucas 5:18), trazer vinhos ao encarregado de uma festa (João 2:8), ou trazer a capa e os livros a Paulo (2 Tm 4:13). Isso não significa simplesmente “suster”, mas tem o sentido de controle proposital sobre o que está sendo carregado de um lugar para outro. (GRUDEN, 1999. p.152)

A palavra pherô, segundo dicionário Strong (5342), significa ser, carregar, gerar, produzir, vir, deixar que ela conduza, ser conduzido, suportar, continuar, liderar, mover, alcançar, correr, sustentar. A palavra phero, nesse texto, de Hebreus 1.3, ratifica tanto a preservação como a concorrência, tendo um sentido muito amplo, sendo o versículo mais completo quanto a descrição da natureza da providência divina. Assim, o texto pode ser traduzido tranquilamente por “movendo todas as coisas pela palavra do seu poder”, é como se Deus, para manter algo existindo, tivesse que movê-lo. Isso fica claro em nossa observação comum, já que não vemos absolutamente nada ao nosso redor em estado de ociosidade, tudo está em movimento o tempo inteiro, em transformação, que nos leva a necessidade de um motor imóvel, de Logus que seja imutável, para que todo o restante faça sentido e até o mesmo o conhecimento seja possível, mas abordaremos esse ponto específico em outro artigo.

O Dr. Heber Campos afirma que:
Paulo afirma categoricamente que Deus “faz todas as coisas de acordo com o conselho da sua vontade” (Ef 1.11). Isto quer dizer que nada do que acontece neste mundo é à parte do cumprimento da vontade de Deus e sem que ele esteja envolvido. A palavra grega que é traduzida como “faz” é energeo (de onde vem a palavra portuguesa energia, que é a comunicação de poder ou o fato de Deus trabalhar), que indica o fato de Deus energizar cada obra na qual ele participa. Sem a energia ou o poder divino, nenhum evento acontece e nenhuma obra é feita. A vontade de Deus opera de modo que em todas as coisas tem participação. Nenhum evento que acontece no mundo está fora da providência de Deus. (CAMPOS, 2001)

A palavra grega energeo, não significa em hipótese alguma, “cooperar”, como dois homens em igualdade, que iniciam um trabalho, mas significa causar ou tornar possível determinada função – fazer funcionar, dar a capacidade para fazer (LOUW, NIDA, 2013, p. 455) logo podemos afirmar que o mover de Deus no homem é causal, ou seja, anterior a atividade da causa secundária, Deus sempre inicia o movimento, mas não só inicia, ele também dirige e está ativo em todo o tempo, portanto, deverá ser rejeitada a ideia de um concursus parcial simultâneo como defendido por molinistas, mas um concursus causal e total, portanto, uma ação da causa primária anterior à causa secundária e uma colaboração de duas causas totais durante a ação concorrente da causa primária e secundária. Algumas passagens paralelas com o uso da palavra energeo, podem ser usadas para ratificar esse posicionamento, além das já citadas, vejamos: “E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos.” (1 Co 12:6). Nessa ocasião, o apóstolo Paulo está falando sobre os dons que o Espírito concede ao cristão, será mesmo que alguém poderá dizer que o homem produz o dom juntamente com Deus e independente dele? Ou é mais razoável concluir que Deus causa, age eficazmente, anterior ao movimento do agente, e só depois o agente começa a sua participação?

Outro exemplo de uso da palavra energeo é o texto de Filipenses 2.13: “porque Deus é o que opera tanto o querer como o realizar.”, pode-se argumentar uma operação parcial por causa do versículo anterior que diz: “operai a vossa salvação com tremor”(vers 12) , mas Paulo não fala aqui de uma colaboração de causas parciais, pois a palavra usada para “cooperar” é a palavra grega synergeo(Strong 4903), e na mesma carta, no mesmo capítulo, em Filipenses 2.25 Paulo usa a palavra synergeo: “Contudo, penso que será necessário enviar-lhes de volta Epafrodito, meu irmão, cooperador (synergeo) e companheiro de lutas, mensageiro que vocês enviaram para atender às minhas necessidades.” (Filipenses 2:25), se em Filipenses 2.13 Paulo quisesse passar uma ideia de cooperar, como causas parciais, ele saberia muito bem que palavra usar, não seria energeo, mas synergeo. Afirmamos então que tanto a causa primária como a causa secundária são totais durante o evento acontecido, e que colaboram, mas não como causas parciais e simultâneas, mas como causas totais sendo a primária anterior à secundária.

O posicionamento que defende um concursus não causal, mas simultâneo, que nos leva à causas parciais, foi rejeitado pelo Sínodo de Dort:

Erro 9 – Graça e livre vontade são as causas parciais que operam juntas no início da conversão. Pela ordem destas causas a graça não precede à operação da vontade do homem. Deus não ajuda efetivamente a vontade do homem para sua conversão, enquanto a própria vontade do homem não se move e decide se converter.(CÂNONES DE DORT, Rejeição de Erros, Erro 09)

Fica também rejeitada a tese de que, embora o mover de Deus seja causal, o agente segue sozinho a partir disso, ou seja, que Deus apenas “empurra” o agente livre, uma vez que movimento algum pode ser produzido sozinho, é impossível que o homem se mova sozinho, mesmo que tenha tido uma causa inicial, essa mesma causa não pode abandoná-lo. O grande reformador diz:

Contudo não repudio totalmente o que se diz acerca da providência geral, mas que, por sua vez, me concedam que o universo é regido por Deus, não apenas porque vigia sobre a ordem da natureza por ele estabelecida, como também porque exerce peculiar cuidado de cada uma dentre suas obras. Realmente é verdade que as espécies das coisas são movidas, uma a uma, por instinto secreto da natureza, como que a obedecerem ao eterno mandato de Deus, e que o que Deus uma vez estatuiu emana naturalmente. E aqui pode-se evocar o que Cristo diz, ou, seja, que ele e o Pai estiveram sempre em ação desde o início [Jo 5.17]; e o que Paulo ensina: que “nele vivemos, nos movemos e existimos” [At 17.28]; e o que também o autor da Epístola aos Hebreus, querendo provar a deidade de Cristo, afirma: todas as coisas são sustentadas por seu poderoso arbítrio [Hb 1.3]. (CALVINO, S/D, p. 203)

3.2 – O mover de Deus, além de causal não é indiferente

Outro erro a ser cometido é o de achar que Deus, pelo fato de mover a criatura de acordo com sua natureza, esteja submetido à natureza da causa segunda, mas antes, ele tem poder de alterar essa natureza, prova disso são os milagres, que mudam drasticamente a natureza dos objetos criados, fazendo-os agir contra sua própria natureza, como o caso dos três homens no livro do profeta Daniel, que não se queimaram com o fogo, se o fogo deixou de queimar, então Deus alterou a natureza do fogo, para que não queimasse, ou alterou a natureza da pele humana, para que a mesma não pudesse ser queimada pelo fogo.

João Calvino diz:

E de fato Deus reivindica para si onipotência, e quer que reconheçamos que ela lhe é inerente, não como a imaginam os sofistas, indiferente, ociosa e semi-entorpecida; mas, ao contrário, vigorosa, eficaz, operosa e continuamente voltada à ação; tampouco uma onipotência que seja apenas um princípio geral de movimento indistinto, como se a um rio ordenasse que flua por leito uma vez preestabelecido; mas, antes, de modo que se ajuste a movimentos individuais e distintos. Por isso, pois, ele é tido por Onipotente, não porque de fato possa agir, contudo às vezes cesse e permaneça inativo; ou, por um impulso geral de continuidade ao curso da natureza que prefixou, mas porque, governando céu e terra por sua providência, a tudo regula de tal modo que nada ocorra senão por sua determinação. Pois, quando se diz no Salmo [115.3] que “Ele faz tudo quanto quer”, trata-se de uma vontade definida e liberada. Ora, seria insipiente interpretar estas palavras do Profeta à maneira dos filósofos, ou, seja, que Deus é o agente primário, visto ser o princípio e a causa de todo movimento, quando, antes, nas coisas adversas, os fiéis se confortam neste alento: que, já que estão debaixo de sua mão, nada sofrem senão pela ordenação e mandado de Deus. Pois, se o governo de Deus assim se estende a todas as suas obras, é pueril cavilação limitá-lo ao influxo da natureza. (CALVINO, S/D, 200-201)

Embora Deus mova a causa secundária segundo a natureza dela mesma, não podemos afirmar que Deus esteja limitado a agir somente assim, como se a natureza de tal ser pudesse limitá-lo. A razão de rejeitar uma concorrência indiferente, ou seja, que Deus apenas se move de acordo com a natureza da criatura, sem poder incliná-la para poder fazer Sua vontade, nos levaria a conclusão de que os acontecimentos seriam determinados pela criatura e não por Deus. Se a criatura é quem detém o poder de determinar o evento a se seguir, então Deus passa a ser um agente passivo na concorrência e, portanto, um agente determinado, ao invés de determinante. Isso nos levaria a conclusões absurdas, pois tornaria a criatura a verdadeira governante, não Deus. Isso é rejeitado pelas Escrituras, que diz que “Como ribeiros de águas assim é o coração do rei na mão do SENHOR, que o inclina a todo o seu querer”. (Provérbios 21:1), ou “…porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Filipenses 2.13), e ainda “O coração do homem planeja o seu caminho, mas o SENHOR determina os seus passos” (Provérbios 16:9). Deus não poderia inclinar a vontade do homem, nem determinar os passos do mesmo caso a sua operação sobre a criatura, estivesse sujeita totalmente a natureza da mesma, e como mostramos anteriormente, nas Escrituras, Deus é continuamente quem determina, Deus nunca é determinado por outro. Para que Deus incline a vontade do homem para fazer isso ou aquilo, Deus age na natureza deste, para que ao ser movido o seja de vontade própria, preservando a liberdade humana, ou seja, Deus pode tanto não alterar a natureza humana, entregando o ser humano ao seu próprio prazer, como acontece com os ímpios reprovados e suas atitudes más, como Deus pode mudar a natureza do homem para ele agir conforme Deus quer, lembrando que sempre que Deus atua na natureza do homem é para que o mesmo faça o bem, pois a maldade e depravação já é inerente ao homem desde que nasce, devido à depravação total. Por esse mesmo motivo, não se pode ter o que chamamos de liberdade libertária, uma liberdade autônoma, onde o homem poderia fazer diferente daquilo que foi movido por Deus, já que o mesmo é escravo de sua natureza. Exploraremos esse ponto mais a frente.

3.3 – A determinação divina não nos leva ao fatalismo

Embora já tenhamos provado que nossos atos, mesmo determinados, são dotados de significados, se faz também necessário mostrar que a determinação divina não é fatalista. O fatalismo é cego e necessário, a determinação divina é certa, mas não é necessária, pois uma vez que os atos livres são determinados pela vontade livre de Deus, cada ato livre, ainda que certo, poderia ser diferente, pois a vontade livre de Deus é autônoma. Portanto, embora o decreto ou a determinação de Deus torne os eventos futuros certos, não tornam eles necessários, portanto não pode-se configurar fatalismo.

Algo importante a se considerar, é que a acusação de fatalismo só tem valor porque vem embutida em si, o argumento de que nossas atitudes perdem significado caso o destino seja fatal, isso também não é verdade. Mesmo que o fatalismo fosse verdadeiro, ainda assim nossos atos teriam todos os significados. Um exemplo é quando assistimos um filme em que já sabemos o final, mesmo que no final o mocinho se dê bem, ainda assim reconhecemos a força de vontade do mocinho, consideramos ele um herói e ficamos felizes porque o vilão perdeu, isso tudo porque consideramos que, mesmo que o escritor do roteiro tenha predestinado o personagem a vencer e outro a perder, cada personagem mostra seu valor e o significado de suas atitudes dentro da trama, pois mais importante que o destino, é o caminho que se segue até ele, um herói ainda é um herói, mesmo que esteja determinado a ser, e o vilão ainda é um vilão, mesmo que esteja determinado a ser, então consideramos refutada a objeção de que nossos atos perderiam os significados se fossem determinados.

3.4 – Deus determina todas as coisas, mas não é o autor do mal

Parece ser óbvio, que se Deus determina todas as coisas, então ele determina o mal, mas isso não é verdade, quem assim pensa comete o erro de saltar do decreto para o ato final sem analisar a execução do decreto. Existem modos de execução do decreto de Deus e é nesse meio, que o concursus está diretamente envolvido, que está a diferença entre o decreto dos atos bons e o decreto dos atos maus. Primeiramente vamos à exposição do que defende a teologia reformada calvinista e depois passaremos para a resolução do problema.

Calvino diz que Deus é a fonte de todas as coisas boas, mas o homem é que desvia sua mente:

Por outro lado, nem o podes visualizar com clareza, sem que reconheças ser ele a fonte e origem de todas as coisas boas, donde deveria nascer não só o desejo de se apegar a ele, mas ainda de depositar nele sua confiança, se o homem não desviasse sua mente da reta investigação para sua depravação. (CALVINO, S/D p.51)

A Confissão de Fé de Westminster, cap V.IV, expressamente diz:

A onipotência, a sabedoria inescrutável e a infinita bondade de Deus, de tal maneira se manifestam na sua providência, que esta se estende até a primeira queda e a todos os outros pecados dos anjos e dos homens, e isto não por uma mera permissão, mas por uma permissão tal que, para os seus próprios e santos desígnios, sábia e poderosamente os limita, e regula e governa em uma múltipla dispensarão mas essa permissão é tal, que a pecaminosidade dessas transgressões procede tão somente da criatura e não de Deus, que, sendo santíssimo e justíssimo, não pode ser o autor do pecado nem pode aprová-lo.

Deus não criou o mal, nem criou o pecado. O pecado e o mal são frutos da corrupção da natureza, não da natureza criada, como diria João Calvino:

Mas o único fundamento que os maniqueus têm – não ser próprio atribuir-se a um Deus bom a criação de qualquer coisa má –, isto nem de leve fere a fé ortodoxa, a qual não admite que no universo inteiro haja alguma natureza má, porquanto nem a depravação e malignidade, seja do homem, seja do Diabo, ou os pecados que daí nascem, provêm da natureza, mas da corrupção da natureza;(CALVINO, S/D. p 166)

Os Cânones de Dort vão além, diz que tal afirmação é blasfêmia:

15. A Escritura Sagrada mostra e recomenda a nós esta graça eterna e imerecida sobre nossa eleição, especialmente quando, além disso, testifica que nem todos os homens são eleitos, mas que alguns não o são, ou seja, são passados na eleição eterna de Deus. De acordo com seu soberano, justo, irrepreensível e imutável bom propósito, Deus decidiu deixá-los na miséria comum em que se lançaram por sua própria culpa, nao lhes concedendo a fé salvadora e a graça de conversão. Para mostrar sua justiça, decidiu deixá-los em seus próprios caminhos e debaixo do seu justo julgamento, e finalmente condená-los e puni-los eternamente, não apenas por causa de sua incredulidade, mas também por todos os seus pecados, para mostrar sua justiça. Este é o decreto da reprovação qual não torna Deus o autor do pecado (tal pensamento é blasfêmia!), mas O declara o temível, irrepreensível e justo Juiz e Vingador do pecado.(CÂNONES DE DORT, Cap 1.15)

3.4.1 – Resposta ao problema da autoria do mal

Deus não precisa colocar o mal em ninguém, Deus quando move o homem, ele move o homem de acordo com sua natureza, se a natureza do homem é má, ele fará o mal, Calvino usa a seguinte ilustração:

E, indago eu, donde provém o mal cheiro em um cadáver que, pelo calor do sol, não só se fez putrefato, mas até já entrou em decomposição? Todos vêem que isso é provocado pelos raios do sol; contudo, ninguém por isso diz que eles cheiram mal. Daí, como no homem mau residem a matéria e a culpa do mal, que razão há para que se conclua que Deus contrai alguma mácula se, a seu arbítrio, ele faz uso de sua atuação? (CALVINO, S/D, p.216)

A ilustração de Calvino é bem elucidativa, a luz divina é o poder para energizar o homem, e o cadáver representa o homem de natureza depravada, quando a energia de Deus o move, ele irá exalar sua podridão, se a mesma luz incide sobre um corpo vivo, ele produz vida, saúde etc. Observamos claramente que o problema não está na luz, mas na natureza do corpo a ser atingido, a mesma luz sobre dois corpos, dois resultados diferentes. Mas porque então se diz que Deus determinou tal ato? Respondemos que é porque Ele o tornou certo, a luz tornou certa a putrefação do cadáver, mas pela natureza do cadáver, não pela natureza da luz, como o resultado foi certo, ele é determinado, pois a não ser que Deus mudasse a natureza do cadáver, dando-lhe vida, o cadáver exala seu mau cheiro. Assim, Deus não determina o mal ativamente, ele determina abandonando e deixando com que aquilo faça exatamente o que já faria devido a uma corrupção que nasceu na própria criatura, não em Deus, o fato de Deus não deixar nada ocioso, a não ser que a destrua, é a razão pelo qual naturezas podres são postas em movimento e aconteçam coisas ruins, se Deus não as movimenta, elas deixam de existir, como já foi explicado no tópico 3.1, e poderíamos perguntar por que Deus as move? Respondemos que tem dia e hora marcada para que todas as naturezas podres sejam destruídas, seja pela transformação em naturezas boas, seja pela sua eliminação, quando Deus deixará de sustentá-las movendo-as.

4 – A Liberdade Libertária é impossível

Vários são os motivos pelo qual a liberdade libertária é impossível, colocaremos pelo menos dois deles. Já foram expostos argumentos escriturísticos, agora exporemos argumentos filosóficos contra tal ideia.

Liberdade Libertária é aquela que o agente racional sempre pode tomar uma decisão diferente da que ele tomou, ou pelo menos ter a capacidade de tomar uma decisão diferente caso haja opções. Esse tipo de liberdade é impossível de existir por pelo menos dois fatores, são eles:

4.1 – A presciência de Deus se torna falível

Imaginemos que qualquer um dos agentes livres (anjos ou Homens), pudesse estar com Deus antes da criação, e esse mesmo habitante perguntasse a Deus o que ele estaria fazendo no dia 07/06/2018, só como exemplo, Deus poderia infalivelmente responder? Suponhamos que Deus dissesse que esse homem estaria em um restaurante comendo, como esse homem poderia decidir estar em outro lugar? Se a liberdade libertária é verdadeira, o conhecimento de Deus sobre o futuro é falível, como o conhecimento de Deus sobre o futuro é infalível e exaustivo, a liberdade libertária não pode ser verdadeira. Há quem possa dizer que Deus apenas contempla o futuro, sem determina-lo, isso nos leva a problemas mais graves, pois atribui a Deus potência passiva, tornando Deus um ser incompleto e, portanto causado, explique-se: Deus é o Ser que tem todas as perfeições, por isso mesmo Ele é causa de todas as causas, a causa primeira, pois não depende de coisa alguma fora Dele e não pode possuir carência alguma das criaturas. Se dissermos que Deus contempla o futuro para saber o que terá no futuro, então esse conhecimento vem de fora de Deus, e não Dele mesmo, esse conhecimento viria das criaturas e de suas ações livres, se Deus recebe algo das criaturas então ele não pode possuir todas as perfeições, pois foi aperfeiçoado recebendo conhecimento de fora. Se Deus contempla o futuro e depois os decreta, quem determinou o futuro na verdade foram as criaturas e não Deus, e Deus passa a ser um Ser determinado e não um determinante, isso seria um total desgoverno da parte daquele que é soberano sobre todo o universo.

4.2 – Gera absurdos lógicos e tornaria o Homem igual a Deus

Deus, sendo causa primeira, não pode ser movido por ninguém, pois não carece de absolutamente nada, tendo todas as perfeições. Todo movimento no universo criado é energizado por Deus, não há movimento que não seja causado por ele (vide tópico 3.1), toda atitude humana é movida por Deus, esse mover é causal. Para que a liberdade libertária seja verdadeira, é necessário que o próprio Homem possa iniciar seu movimento, saindo do estado de “não volição” para o estado de “volição”, esse movimento independente, autônomo, tornaria o Homem um motor imóvel, e, portanto, igual a Deus. Para que a liberdade libertária seja verdadeira a vontade humana deve ser capaz de poder atualizar-se sem à causalidade divina, isso nos gera, além do problema de tornar o Homem um motor imóvel (pois teria a capacidade de passar da potência para o ato sem ser movido anteriormente) e portanto Deus (pois somente o Eterno é motor imóvel), nos leva também a absurdos lógicos uma vez que é impossível que a vontade humana atualize a si mesma, já que nada passa da potência ao ato senão por um ser em ato (à água com potência de evaporar, só atualiza esta potência quando é movida a tal pelo calor do fogo), ora a não ser que assumamos que o nada pode atualizar o móvel (sabemos que do nada, nada vem), ou que o móvel contêm de antemão o ato e a perfeição para qual está em potência (e então cairíamos no absurdo de dizer que algo é motor e móvel ao mesmo tempo sob o mesmo aspecto), isso nos levaria direto à rejeição da lei da não contradição e portanto seria falso, seria como se Pedro tivesse o ato (ou perfeição) de saber o teorema de Pitágoras, e tivesse a potência de saber o teorema de Pitágoras, logo Pedro saberia e não saberia a mesmíssima coisa, o que é absurdo e portanto devemos rejeitar a liberdade libertária pelo bem da lógica. O segundo absurdo lógico é que absolutamente nada pode ser causa de si mesmo, pois toda causa precede seu efeito, assim sendo, se a vontade é auto-causada ela teria que anteceder a ela mesma, o que é também absurdo. Concluímos assim que a liberdade libertária não pode ser verdadeira.

Mas poderão objetar – mas para que o homem tenha liberdade, sua vontade não pode ser determinada por outro, antes, ele mesmo deve determinar sua vontade – respondemos que discordamos que a liberdade não possa ser determinada, uma vez que o homem é uma causa secundária, ele sempre dependerá da causa primária, portanto, sua liberdade sempre será limitada, mas concedemos que o homem possa determinar a si mesmo, mas somente na condição de causa secundária, nunca de primária, se ele se determina como causa primária, ele se torna Deus, pois somente O mesmo é causa primária.

Conclusão

Concluímos que não há um paradoxo entre a determinação divina e os atos livres, e sim, uma concepção errada do que seja um ato livre, assim como uma concepção errada do que seja uma determinação divina. Um ato livre não torna o homem apto a tomar decisões diferentes da que ele tomaria, pois, o mesmo é escravo de sua natureza no entanto, a determinação divina, não coage a vontade humana, nem força o ser humano a escolher A ou B contra sua própria vontade, pois quando Deus inclina o homem a fazer isso ou aquilo, opera em sua natureza, de dentro da para fora, fazendo com o que homem aja de livre vontade. A determinação divina torna o ato certo e portanto, determinado, mas não o torna necessário, logo não é fatalista, já que poderia ter sido de outra forma de acordo com o livre arbítrio de Deus. Deus também não é o autor do mal, nem culpado por este, mesmo que determine e concorra com tais atos. Concluímos que a liberdade libertária é impossível, gerando absurdos lógicos e teológicos.

Referências

1 – CALVINO, J. As Institutas ou Tratado da Religião Cristã. vol. 1. Ed. clássica (latim). Cap XVI.IV. S/D. p. 202
2 – CRAIG apud NETO, N, A, M. O molinismo e a doutrina da depravação total: Uma comparação entre as perspectivas molinista, calvinista e arminiana. Disponível em: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=461. Acesso em 12/06/2018.
3 – Ibid 1. Cap II.II. p 51.
4 – Ibid 1. Cap XIV.III. p. 166.
5 – Ibid 1. Cap XV.VII. p. 195.
6 – Ibid 1. Cap XVI.III. p. 200 – 201.
7 – Ibid 1. Cap XVI.IV. p. 203.
8 – Cânones de Dort. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/credos/dort.htm. Acesso em 11/06/2018.
9 – CAMPOS, H.C. O Ser de Deus e as suas obras: A Providência e sua realização histórica. Cultura Cristã, 2001. p. 8.
10 – CAMPOS, H.C. O Ser de Deus e as suas obras: A Providência e sua realização histórica. Cultura Cristã, 2001. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/providencia/concursus_heber.htm . Acesso em 11/06/2018.
11 – Ibid 9. P. 62.
12 – Confissão de Fé de Westminster. Seção V.I. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/credos/cfw.htm. Acesso em 11/06/2018.
13 – Ibid 12. Seção III.I.
14 – Ibid 12. Seção V.II
15 – Dicionário Grego do Novo Testamento de James Strong: Anotado pela AMG. Bíblia de estudos Palavras Chave: Hebraico – Grego. CPAD. 2010. p. 2443
16 – Ibid 15. pág 2413.
17 – GRUDEN. W. Manual de Teologia: uma introdução aos princípios da fé cristã. Vida. 1999. p.152.
18 – LOUW, J. NIDA, E. Léxico Grego-Português do Novo Testamento. Sociedade Bíblica do Brasil. Referência 42.4. p. 455.

Notas:
1 – Francisco Tourinho – Licenciado em Educação Física pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Pós graduando em psicopedagogia pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. Bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica de Imperatriz – Fateimp. Mestrando em Estudos Teológicos pelo Seminário Internacional de Miami – MINTS.
2 – As referências de Calvino nas Institutas, foram adicionadas de capítulo e subcapítulo para facilitar a conferência de referências em caso de publicações diferentes, já que a usada pelo autor é uma versão digital sem editora, haja visto o domínio público da obra.
3 – Livre arbítrio libertário é o mesmo que liberdade libertária ou liberdade irrecepta, seria definida, de acordo com o filósofo W. L. Craig:
Alguns filósofos diriam que a essência da liberdade libertária é a habilidade de escolher agir ou não de determinado modo sob as mesmas circunstâncias. Uma análise indiscutivelmente melhor da liberdade libertária vê sua essência na ausência de determinação causal da escolha de uma pessoa, independente da própria atividade causal da pessoa. Isso equivale a dizer que causas outras que não a própria, não determinam a forma como essa pessoa faz suas escolhas em determinadas circunstâncias; fica a critério da pessoa a forma como ela faz suas escolhas. Essa concepção de liberdade é muito diferente da visão voluntarista ou compatibilista, que define liberdade em termos da ação voluntária (ou não coagida), de modo que o fato de uma ação ser determinada em termos causais é compatível como [sic.] o fato de ela ser ‘livre’. A noção de […] liberdade libertária […] exclui a hipótese de que Deus determine como devemos escolher livremente.(CRAIG apud NETO, 2015)

2 respostas em “Concorrência divina no calvinismo: o problema da determinação dos atos livres.”

Pra mim o melhor artigo até agora dos tantos excelentes existentes na página, claro, objetivo e extremamente argumentativo. parabéns Tourinho, DEUS te abençoe grandemente! indico você fazer mais e mais obras como esta, com este assunto digo, em formato rápido de leitura pra postagens/publicações.

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