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Da Ilusão de refutar François Turrettini: a miséria da distinção tomista da vontade antecedente e consequente

O tomista Joel Pereira escreveu um texto onde tenta responder às sólidas e irrefutáveis objeções de Francis Turrettini à distinção tomista da vontade antecedente e consequente, dos quais logram aparentes êxitos, mas somente quando não há um olhar crítico e global do argumento do herói da escolástica reformada. Tralharemos os argumentos de Turrettini (azul itálico), Joel Pereira (azul) e os meus (preto), a seguir:

Essa distinção é, em vários aspectos, injuriosa a Deus: (1) porque lhe atribui vontades contrárias (ou seja, Deus quer a salvação de todos e quer a salvação somente de alguns).

Pontue-se à partida que é crença cristã comum que em Deus há a perfeição da vontade, e não poderia ser diferente: toda perfeição pura ou que não implica imperfeição em sua razão formal dever pertencer Àquele que tem todas as perfeições da ordem do ser, e as têm segundo o ângulo da atualidade pura (Suma contra os gentios, cap. LXXIII). Consequentemente, as possui sem qualquer composição em sua essência; logo, a vontade divina deve ser una. Mas uma vez que há composição por parte das coisas queridas por Deus, e por outro lado o nosso intelecto não o conhece senão por um complexo de atos e pelas coisas criadas, segue-se que cabe distinção racional (com fundamento na coisa) na vontade divina unitária.

R – Até aqui concordamos e é exatamente fundamentado nessa verdade que Turrettin afirma que as vontades são contraditórias, visto a vontade ser una, mesmo uma distinção racional não pode ser contraditória, aliás, a própria designação de racional deve-se necessariamente nos remeter àquilo que é lógico não só para nós, mas considerando o que Deus é. Seremos mais claros mais adiante.

Pois bem, dentre as distinções racionais na vontade divina, os escolásticos afirmam a distinção entre vontade antecedente e consequente: a primeira é aquela com a qual Deus quer tudo que convém na sua bondade de maneira absoluta, e a segunda é aquela com a qual Deus quer todas as coisas reais, até mesmo aquelas que não convêm na sua bondade.

R – Aqui já começa o primeiro erro do nosso objetor: não existe vontade divina que não convêm à própria bondade divina, isso é exatamente negar o que acabou de se afirmar. Afirmou-se que a vontade de Deus é una, sem composição e totalmente indistinta de sua essência, então como que pode existir uma vontade em Deus que não convêm à sua bondade, sendo que Deus é totalmente bom? Aliás, querer coisas que não convêm à bondade, é querer a maldade, que sequer é apetecível. Mas prossigamos:

Logo, a primeira objeção de Turrettini sofre pela falta de referência real, pois não há realmente vontades contraditórias em Deus, visto que a vontade é uma perfeição pura e, portanto, se identifica com a essência indivisa e simpliciter simples de Deus.

R – Aqui ele concorda com Turrettini, ele diz que realmente Deus não pode ter vontades contraditórias visto que a vontade de Deus é indivisa. Pois bem, basta agora ele provar que tais vontades antecedente e consequente não são contraditórias.

A composição de antecedente e consequente não se funda pelo lado de Deus, mas pelo lado do cognoscente humano, o qual, por composição que convém radicalmente na sua essência e operações, não pode senão conhecer por atos complexos; neste caso, discernindo terminações distintas queridas por Deus e aplicando, por ficção de sua mente, separação naquilo que é essencialmente uno.

R – No tocante ao “cognoscente humano”, como Joel Pereira diz, pergunto eu segundo tal razão: alguém que deseja e sinceramente deseja algo, ele realizará a menos que seja impedido. Por exemplo: O comerciante deseja e deseja ardentemente salvar suas mercadorias, porém, por ocasião de uma tempestade, a fim de que ele mesmo possa escapar, ele deseja absolutamente lançá-las ao mar. Aqui temos um bom exemplo de vontade antecedente e consequente. Considerando a mercadoria em absoluto, o homem quer salvá-las, mas dadas as circunstâncias da tempestade, ele quer lançá-las ao mar. Note, nesse caso não há contradição entre as vontades, mas isso somente se dá porque o homem é finito e impotente para impedir à tempestade, porém, se tal homem fosse poderoso o suficiente para impedir a tempestade ou salvar toda sua mercadoria mesmo com a tempestade, ele o faria, e se não faz, é porque ele tem duas vontades contraditórias, uma vez que depende dele mesmo salvar a mercadoria. Assim também se Deus deseja salvar todos os homens em absoluto, e não quer salvar a todos dada algumas circunstâncias como a queda, o pecado e a obstinação, que Ele mesmo poderia impedir, segue-se então que Deus ou tem duas vontades contraditórias, ou é impotente para impedir a queda e o pecado humano, ou sua vontade antecedente não é de fato verdadeira, que são os próximos argumentos do reformador e que trabalharemos mais a frente. Veja, a finitude é a condição sine qua non para que tais vontades não sejam contraditórias, deixado o objetor em um beco sem saída, ou se assume que tais vontades são contraditórias, ou se afirma que Deus é finito. Esse argumento será tratado mais a frente.

Com efeito, diz Santo Tomás: “Essa distinção não é tomada da parte da própria vontade divina, em que não existe antes nem depois, mas da parte das coisas que Ele quer”[1]. E confirma Zumel, o luzeiro dos mercedários, dizendo que a distinção em antecedente e consequente não impõe duas vontades distintas em Deus, pois sua vontade é ato único.[2] Logo, resta completamente inócua a seguinte argumentação do nosso eminente reformado:

R – A argumentação do nosso objetor é assim: “Turretin diz que as vontades são contraditórias”. Zumel diz que não é contraditória, como ele mesmo diz: “as vontades de Deus não são contraditórias”
Assim fica refutada a posição de Turretin.

Isso é uma refutação? Mais detalhadamente o nosso objetor diz que Turrettini afirma que a vontade antecedente e consequente são contraditórias, e a grande refutação é: não são contraditórias “E confirma Zumel, o luzeiro dos mercedários, dizendo que a distinção em antecedente e consequente não impõe duas vontades distintas em Deus, pois sua vontade é ato único.”

Ele simplesmente diz que não é, sem provar o porquê de não ser e já diz que o argumento do reformador genebrino é inócuo. Se esse argumento for válido, então simplesmente digo que Turrettini afirma ser contraditório e torno inócuo o argumento do Joel Pereira. Prossigamos:

Segundo, essa distinção não pode ocorrer em Deus sem atribuir-lhe não apenas estultícia e impotência (ao fazê-lo pretender seriamente e desejar com natural afeição aquilo que não é realizado e não pode ser realizado por intermédio do homem, visto que ele mesmo não o quer), mas também mutabilidade, porque não pode haver lugar para a vontade conseqüente até que a antecedente seja primeiramente rescindida. Pois, como poderia Deus ao mesmo tempo, pelo mesmo ato de vontade, querer salvar todos os homens e condenar a maioria deles?

E se é absurdo colocar composição real na essência divina, mediante uma tal composição de “duas vontades”, mais absurdo ainda seria se tais vontades fossem contraditórias.

R – Concordamos, e esse é o argumento de Turrettini contra os tomistas, dizer que Turrettini está errado porque a vontade de Deus não pode ser composta quando Turrettini está exatamente dizendo isso, é de uma imperícia sem tamanho.

Mas Turrenttini insiste que se elas existissem, então se quitariam mutuamente, visto que o ato de uma seria como a negação do ato da outra. — O argumento de Turrenttini não poderia ser mais atrapalhado. Em primeiro lugar, basta observar com Santo Tomás (I, q. 19, art. 6) que as terminações das “duas vontades” são a mesma realidade, porém considerada por ângulos diversos, não por ângulos contraditórios. Ora, algo pode ser considerado absolutamente, sem atenção ao seu estado atual completo ou já coberto com todos os acidentes e circunstâncias, ou ser considerado na sua condição real e total, tal como aparece ordenada à existência, com ou sem notas opositivas ao bem. Assim sendo, podemos, sem contradição, dizer que Deus quer a saúde para João enquanto o considera homem, e ao mesmo tempo dizer que Deus quer a doença que matará João, enquanto o considera homem imoral e merecedor do castigo.

Perceba-se que não se tratam de términos contraditórios, mas meramente distintos.

R – Não se o próprio Deus pode impedir João de ser um imoral. O argumento carrega implicitamente a impotência divina de impedir João de ser imoral. O objetor poderá dizer que Deus permite João ser imoral e que João o faz de vontade própria ao ter a permissão de Deus e que por isso Deus o condena. Isso seria uma boa resposta, porém tanto os atos aprobatórios de Deus quanto os permissivos estão inclusos em sua vontade eficaz em que tudo se realiza, não em sua vontade antecedente que nem sequer se realiza. Basta pensar: por que Deus permitiria algo que não vai acontecer? Assim, se Deus realmente quer que João tenha saúde, então por que permitiria que ele pecasse para que o mesmo ficasse doente? Só há duas soluções, ou a vontade de Deus é contraditória ao permitir algo que não queria que acontecesse, ou Deus não podia fazê-lo, ou seja, é impotente.

Obviamente que pelo ângulo da vontade divina antecedente, no vetor sobrenatural, Deus não considera pecado algum da criatura, nem mesmo qualquer de seus impedimentos postos ou não postos às graças suficientes, para fins de uma ordenação geral à Glória, justamente porque se trata de uma consideração absoluta de todos os homens sob a condição de estarem em estado de graça. Ora, tal fim geral querido por Deus é algo que convém com a sua bondade, pois “[…] o fim último gratuito de todas as criaturas em ordem sobrenatural é a contemplação de Deus mesmo, na qual encontra-se a beatitude eterna do homem”[3], logo não repugna a vontade antecedente. Já pelo ângulo da vontade divina consequente, Deus considera a mesma criatura sob um ângulo distinto, a saber, tal como ela se acha completamente na realidade, revestida com todos os seus acidentes e circunstâncias, até mesmo com aquilo que faz oposição ao bem, isto é, pecando ou pondo resistências aos auxílios sobrenaturais conferidos. Com efeito, Deus pode querer, por vontade consequente, a condenação da criatura que é, por outro aspecto, termo da vontade divina antecedente de salvação geral, e não há contradição naquilo que é compossível.

R – O argumento acima padece do mesmo problema. Deus permite a queda, permite a resistência do homem, etc. é porque é obrigado a permitir ou porque quer permitir? Deixaremos o próprio Joel Pereira responder “Logo, percebe-se que é Deus mesmo que decide se decretará ou não dar premoções físicas especiais ou graças infalivelmente eficazes para quitar os impedimentos das criaturas. É Deus mesmo que decide se quer algo sob certa condição, se dará médios negativamente impedíveis pelas criaturas e se, ao fim e ao cabo, fará aparecer ou não o mal do qual não é causa. Não há aqui um Deus que “espera” ou é “determinado” pelo homem. Há um Deus infalível que conhece infalivelmente o mal do qual não é causa. O início da linha do mal pertence à causa defectível, conquanto jamais deixe de estar sob a divina providência, a qual é omniabarcante.”

Ora, mas se Deus é quem decide se dará ou não premoções eficazes especiais, ou graças infalivelmente eficazes para quitar os impedimentos das criaturas, então como que pode haver uma condição real na qual a criatura pode ser considerada distintamente com duas vontades? Veja o tamanho do disparate:

1 – Deus quer salvar a todos quando não considera a resistência que alguns farão à graça.

2 – Deus salvará a todos que não resistem a graça.

3 – Deus mesmo é quem decide (decreta) quem receberá as graças infalíveis que quebra a resistência do homem.

4 – Deus decide não dar a alguns as graças infalíveis eficazes.

Com as proposições acima só cabem duas conclusões: ou Deus nunca quis salvar a todos (ou seja, a vontade antecedente não existe), ou Deus tem vontades contraditórias, visto que quer salvar a todos, pode salvar a todos e, simultaneamente, permite pela sua vontade eficaz a queda sabendo que todos não se salvarão caso isso aconteça, ou Deus é impotente e não pode salvar a todos. As objeções de Turrettini estão totalmente de pé e Joel Pereira sequer chegou a arranhar seus argumentos.

Mas, vejamos ainda outra reclamação de Turretini:

Terceiro, a vontade antecedente não é tanto uma vontade quanto uma veleidade ou volição fraca, um desejo vazio e fútil, incapaz de realização, a qual não pode ser aplicada a Deus (o sapientíssimo e poderosíssimo). Pois, como poderia ele ser chamado o perfeitíssimo e felicíssimo se não pudesse concretizar o desígnio e objetivo realmente pretendido, em virtude da intervenção e obstáculo da criatura também se determinando independentemente?

Dois erros palmares logo de cara. O primeiro é que a vontade divina antecedente não é “vazia” ou “fútil”, justamente porque com ela Deus quer realmente algo, a saber, tudo aquilo que absolutamente convém na sua bondade.

R – Deus realmente quer algo, mas não faz? O enunciado acima mostra a solidez os argumentos anteriores de Turrettini.

Nem mesmo o rígido Báñez teve o desplante de negar o valor da vontade antecedente, a qual chamava “vontade metafórica”, antes negou que ela fosse produtora de efeitos reais, pondo-a em rígida e essencial ordem à vontade consequente — o que também é um erro, conquanto menor.

R – Banez era sábio e acertou mais que Zumel. A vontade antecedente não produz efeito algum na realidade, e se tal existisse, deveria estar em consonância com a vontade consequente (o que nós concordaríamos se assim fosse) não sendo contraditória como estabelece o pensamento de Zumel e seus seguidores.

O segundo erro é supor que a vontade antecedente implica “impotência” por parte de Deus. Dizê-lo é simplesmente não compreender o caráter essencialmente condicionado desta vontade, e supor, sem aportar qualquer razão, que ou Deus deve querer tudo quando quer de modo infalível ou não pode querer. Mas o que queremos dizer por “caráter condicionado”? Muito simples: significa que tudo aquilo que Deus quer que aconteça, acontece de forma infrustrável, posto que é impossível a causa primeira ser determinada ou vencida pela causa segunda, mas acontece como Deus quer que aconteça.

R – Por isso mesmo que a vontade antecedente não existe, porque ela não se concretiza, e se existir, Deus realmente não desejou, sendo uma vontade vazia, no máximo, seria uma vontade de signo. Basta usar o próprio argumento do Joel.

E como Deus pode querer condicionalmente que as coisas aconteçam? Também muito simples: querendo que se realize a ação da criatura se ela não puser impedimentos ao bem, isto é, se ela seguir no bem do qual Deus é causa primeira, e não querendo que se realize a ação da criatura se ela puser impedimentos, isto é, se ela se desviar do bem e iniciar, como causa primeira do mal, a linha do pecado; com efeito, sem querer infrustravelmente que a criatura ponha ou não ponha qualquer obstáculo. Ou seja, quer primeiro algo sob certa condição, a qual, acrescente-se, será efetivamente satisfeita ou não se Ele mesmo quiser ou permitir infalivelmente pela sua vontade consequente. Em suma, por assim dizer, Deus vai aumentando o grau da atuação (suave e forte) da sua vontade sobre a vontade da criatura.

R – O “se” destacado em negrito é totalmente falacioso. A condicional só seria verdadeira se a vontade de Deus permanecesse duvidosa até que a condição fosse cumprida, e se a primeira causa fosse, por este meio, mantida em incerteza pelas causas segundas, o que já foi negado pelo próprio Joel Pereira. Se o conhecimento de Deus não pode ser duvidoso, se o conhecimento divino não espera, nem é determinado pela criatura, sendo Ele mesmo que torna certo quem atenderá tal condição, então como que Ele pode querer salvar a todos quando Ele nunca quis que todos atendessem às condições estabelecidas para que todos se salvem? A cada arrazoado do Joel Pereira fica mais e mais estabelecida a solidez dos argumentos de Turrettini.

Observe-se que é ponto de comum acordo que o mal moral começa pela criatura; mas o que nem todos percebem é que isso só faz sentido se afirmarmos o caráter condicionado e real da vontade divina antecedente. Só assim podemos dizer, sem subterfúgios, que Deus quer permitir que a criatura disponha impedimentos ou faça o mal. A vontade divina jamais falha nem pode falhar, mas não há óbice para que Deus queira algo infalivelmente ou com certa condição.

R – Condicionado em que sentido? Note que o texto nos faz pensar que a ação a seguir é totalmente indeterminada, enquanto se alegamos que tal afirmação coloca em Deus uma falha, ele afirmará que a ação a seguir é determinada por Deus e está debaixo de sua providência. Aristóteles teria um ataque cardíaco com tamanha sofisma.

Quarto, Deus, nesses moldes, estaria sujeito ao homem, visto que a vontade consequente depende da determinação da vontade humana, de modo que ninguém seria eleito por Deus se primeiramente não escolhesse a Deus por sua fé e arrependimento.

Esta objeção é um pouco (mas só um pouco mesmo) melhor do que as anteriormente. Com efeito, para uma completa resposta basta apresentarmos a concórdia de Marín-Sola da providência divina antecedente e consequente. Veja-se:

Momento 1 — Vontade antecedente: Deus decreta premoções físicas gerais e falivelmente eficazes (as quais, em ordem sobrenatural, são as graças suficientes falívis). Tais premoções, porém, são infalíveis em sua incoação, mas falíveis quanto ao seu curso e êxito final.

R – São “falíveis quanto ao seu curso e êxito final”, ficando a cargo de quem fazer o trânsito da potência para o ato? Se a própria premoção não faz o homem infalivelmente transitar da potência para o ato, então segue-se que Deus seria determinado pelo homem, visto que não há termo médio entre o determinante e o determinado. Agora suponhamos que o nosso objetor diga que, na verdade, é Deus quem determina, então não existe premoção falível quanto ao seu curso e êxito final, pois como que Deus determinaria e tal premoção seria falível? Se se disser que depende de quem põe o não impedimento, então não poderia haver certeza no conhecimento divino. Mas prossigamos:

Momento 2 — a ciência de visão dos decretos do primeiro momento. Deus vê a incoação falível do ato e vê o impedimento posto (defeito atual) ou não posto de fato ao curso e término da moção.

R – Deus vê quem pôs ou não impedimento através de sua ciência de visão dos decretos, que Ele mesmo emitiu. Decretos esses falíveis ou infalíveis? Se falíveis, como Deus poderia ver? Se infalíveis, como que tal premoção pode ser falível em seu término?

Momento 3 — Vontade consequente: a) Deus decreta dar premoções especiais e infalivelmente eficazes. Por tais premoções, Deus faz, infalivelmente, que não se ponham impedimentos ou que, uma vez postos, sejam quitados e, com efeito, o ato siga na linha do bem infalivelmente; b) Deus decreta não dar premoções especiais e infalivelmente eficazes, mas permite a continuação das premoções gerais.

R – Deus viu através da ciência de visão com decretos no ato anterior, mas somente agora ele emite as premoções infalíveis. Isso nos leva a concluir que, ao contrário do que Joel Pereira afirma, essa doutrina ensina sim que Deus depende da ação humana para agir, refutando a sua própria base.

Momento 4 — A ciência de visão dos decretos do terceiro momento. Dos decretos eficazes e infalíveis de dar ou não dar premoções infalíveis, segue-se infalivelmente a ciência divina do bem e do mal.[4]

Logo, percebe-se que é Deus mesmo que decide se decretará ou não dar premoções físicas especiais ou graças infalivelmente eficazes para quitar os impedimentos das criaturas. É Deus mesmo que decide se quer algo sob certa condição, se dará médios negativamente impedíveis pelas criaturas e se, ao fim e ao cabo, fará aparecer ou não o mal do qual não é causa. Não há aqui um Deus que “espera” ou é “determinado” pelo homem. Há um Deus infalível que conhece infalivelmente o mal do qual não é causa. O início da linha do mal pertence à causa defectível, conquanto jamais deixe de estar sob a divina providência, a qual é omniabarcante. Assim, ao dizermos que Deus inicia a linha do bem — linha na qual a criatura atua sempre subordinadamente –, estamos indicando que a impressão do ato causal na vontade criada é sempre infalível e para o bem. Mas uma vez que a linha do mal supõe a linha do bem, pois o mal é opositivo ao bem, logo a não consecução para o bem ou o desvio (formal e atual) para o mal será sempre formalmente devido à criatura como causa primeira ineficaz sob a permissão de Deus. E para lançar a tampa sobre o caixão, veja-se o que diz o Aquinate: “Deus move todas as coisas segundo a maneira de ser delas. E esta divina moção é participada em alguns com necessidade, mas na natureza racional com liberdade, visto que a potência racional tem possibilidade para coisas opostas. Por isso de tal maneira Deus move a mente humana ao bem, que ela pode resistir a esta moção.”[5]

R – Esse último ponto não lança nenhuma tampa no caixão. Primeiro que o próprio Turretin concordará com tal declaração. Segundo que em momento algum essa resistência é indeterminada a ponto de se tornar duvidosa para Deus, mas o próprio Deus que permite, por uma vontade eficaz (não antecedente e ineficaz) que o ser humano resista, ou seja, o homem resiste quando Deus quer permitir que tal homem resista. Ao contrário do que o texto quer deixar transparecer, Deus não é resistido quando tenta não ser resistido, mas Deus é resistido quando quer se deixar, por querer, ser resistido. Isso é exatamente o oposto do que Joel Pereira ensina porque sendo resistido ou não sendo resistido, a vontade de Deus é feita sempre, não havendo nenhum espaço para uma condicional de uma vontade que não se realiza como a vontade antecedente, ou uma condicional que causa a vontade divina como o texto quer sugerir.

Quinto, é repulsivo ao evangelho, que constantemente ensina que Deus quer salvar, não simplesmente todos, mas somente os eleitos e crentes em Cristo, e que os meios de salvação não são oferecidos ou conferidos a todos, mas somente a alguns. Enfim, isso subverteria a eterna eleição divina, porque seria deixada na incerteza, fundamentada não no beneplácito (eudokia) de Deus, mas na vontade humana (e nada é mais incerto e mutável do que ela). Ela se tomaria de tal natureza que não poderia responder por nenhuma execução (i.e., se tomaria vazia e ineficaz).

A última objeção de Turrettini simplesmente reafirma a crença majoritária entre os reformados de que Deus não quer salvar a todos, mas somente os eleitos. Mas o fato é que as incompreensões acerca da distinção entre vontade divina antecedente e consequente não são apenas contrárias à razão, mas também colocam os textos bíblicos em confronto direto com Turrettini. Não nos cabe neste pequeno texto apresentar os fundamentos escriturísticos e teológicos da vontade salvífica universal; cabe, porém, pontuar que a doutrina tomista, em especial aquela que é segundo a mente de Zumel, sistematiza de um modo harmonioso os diversos textos bíblicos que afirmam uma vontade divina salvífica universal (1 Tm 2:4/Jo 3:16) e o fato de que muitos não se salvam, a saber: com vontade antecedente, Deus quer real e sinceramente a salvação de todos os homens que não rejeitarem a sua graça, e para isso dispõe os meios suficientes ou adequados, mas com vontade consequente, não quer a salvação para todos os homens, porque considera alguns enquanto rejeitam a sua graça. Com efeito, Deus decide gratuitamente conceder as graças ulteriores àqueles que receberem, sem impedimentos negativos, a sua graça suficiente, e decide não quitar o impedimento posto pelos demais, os quais rejeitam a sua graça. Segue-se, por fim, a salvação e a condenação de alguns. — Ficam harmonizados na maravilhosa Graça de Deus o fato concreto de que Cristo resgatou a sua Igreja para si com o seu próprio sangue e a vontade divina de querer que todos os homens se salvem.

Interessantemente, Joel Pereira usa o texto de 1 Tm 2.4 que diz que Deus “Que quer que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade.” A questão é que o texto trata da vontade salvífica de homens pecadores, já considerando suas circunstâncias atuais e o pecado dos mesmos. O texto pede orações pelos homens pecadores e que precisam de salvação. Porém, o mesmo Joel Pereira dirá que na vontade antecedente: “que pelo ângulo da vontade divina antecedente, no vetor sobrenatural, Deus NÃO CONSIDERA PECADO ALGUM DA CRIATURA, nem mesmo qualquer de seus impedimentos postos ou não postos às graças suficientes, para fins de uma ordenação geral à Glória, justamente porque se trata de uma consideração absoluta de todos os homens sob a condição de estarem em estado de graça.”

Como que Deus vai querer salvar uma criatura sem considerar o seu pecado? Aliás, supondo que exista tal vontade antecedente de salvar um homem que não tem pecado, é disso que o texto trata? Aliás, existe qualquer texto, apenas um só, na Escritura sagrada que trate da salvação humana sem considerar o pecado humano? Se não, a tal vontade antecedente não passa de uma invencionice humana. Usar textos bíblicos para provar a vontade antecedente é um tiro no pé, já que todos os versículos bíblicos usam o termo salvar já considerando as circunstâncias atuais da criatura, não sem considerá-las.

Dado o exposto, vemos como os argumentos de Turrettini são sólidos e de maneira alguma foi refutado por Joel Pereira.

O texto de Joel Pereira poderá ser conferido no link:

https://joellpereirajpl.medium.com/uma-resposta-a-fran%C3%A7ois-turrettini-sobre-a-vontade-divina-antecedente-e-consequente-8029ed55518c

4 respostas em “Da Ilusão de refutar François Turrettini: a miséria da distinção tomista da vontade antecedente e consequente”

Olá Tourinho, duvida: 1 No livro “Justificação, O núcleo da fé cristã” o reverendo fala q se Cristo foi verdadeiramente homem então Ele substituiu toda a humanidade, e negar isso seria um problema cristológico.
Como você responde?
2 Verdade que Calvino acreditava da regeneração batismal?
3 Qual o problema que os reformados vêm na visão luterana da ceia?

A paz do Cristo.
Como posso ter certeza da salvação no calvinismo se a expiação é limitada?
Alguns falam que “Deus te dá à certeza”, mas pois quantos tiveram certeza e apostataram?

Todo aquele que sinceramente crê em Jesus como único e suficiente salvador, deve acreditar que é um salvo, a Escritura garante. Há tbm o testemunho interno, e por último, no momento de sua morte vc tbm pode saber.

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