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Calvinismo

Deus só conhece o que decreta? Existe um conhecimento médio?

Uma das objeções mais infrutíferas ao calvinismo é o de que defendemos que Deus só conhece o que Ele mesmo decreta. No calvinismo nunca se afirmou que Deus só conhece o que decreta. O que o calvinismo afirma é que Deus só tem presciência daquilo que decreta, ou seja, aquilo que de fato vai acontecer, Deus só sabe porque decretou. Vamos explicar melhor.

No calvinismo, é costumeiro dividir o conhecimento de Deus, didaticamente, em duas partes, o conhecimento de simples inteligência, também chamado de natural, e o conhecimento de visão, também chamado livre.
No conhecimento de simples inteligência, Deus conhece todos os futuros possíveis, aquilo que poderia ou não acontecer de acordo com que Ele poderia ou não decretar. Aqui, nesse conhecimento, se Deus conhece “p”, “p” não acontece necessariamente, pois não há decreto.

Já o conhecimento de visão ou livre é o conhecimento daquilo que é certo de acontecer no mundo criado. Quando falamos que Deus só conhece o que decreta, estamos nos referindo somente ao conhecimento de Visão, ou seja, o conhecimento daquilo que vai acontecer de fato. Deus decreta, Deus sabe. Nesse conhecimento, se Deus conhece “p”, “p” necessariamente acontece. AQUI MORA A PRESCIÊNCIA DIVINA, Deus sabe tudo que acontece no mundo real, por causa do seu decreto. Agora, aquilo que poderia acontecer, Deus não sabe pela presciência, mas pela onisciência, que engloba os dois tipos de conhecimento (Visão e simples inteligência), pelo de visão Deus conhece o que vai acontecer de fato, pelo de simples inteligência Deus conhece todas as hipóteses de acordo com as várias hipóteses de decreto que Deus poderia emitir.
O Conhecimento natural também envolve o conhecimento daquilo que é necessário e não depende da livre vontade de Deus conhecer, pois são elementos que são reflexos diretos do próprio Deus, como no caso das leis da lógica, operações matemáticas, que são reflexos diretos do intelecto divino, e os fundamentos morais, que também são imutáveis, reflexo direto do caráter divino.
Francis Turretini ensina:
Embora o conhecimento de Deus seja uno e simples intrinsecamente não menos que sua essência, ele pode ser considerado de maneiras diferentes, extrinsecamente, quanto aos objetos. Mas comumente e distinguido pelos teólogos entre o conhecimento da simples inteligência (ou natural e indefinido) e o conhecimento da visão (ou livre e definido).O primeiro é o conhecimento de coisas meramente possíveis, e por isso e chamado de indefinido, porque nada em mãos e determinado por Deus concernente a eles. O segundo e o conhecimento de coisas futuras e é chamado de definido, porque coisas futuras são determinadas pela infalível vontade de Deus. Por isso diferirem mutuamente: (1) em objeto, porque o conhecimento natural se ocupa de coisas possíveis, porém o soberano de coisas futuras; (2) em fundamento, porque o natural se fundamenta na onipotência de Deus, porém o soberano depende de sua vontade e decreto, por cujas coisas passa de um estado de possibilidade a um estado de futurição; (3) em ordem, porque o natural precede o decreto, porém o soberano o segue, porque visualiza coisas futuras; agora elas não são futuras, exceto por meio do decreto.1

Há em Deus um médio? Negamos contra molinistas.

Luís de Molina explica o seguinte:
Devemos distinguir em Deus uma ciência tripla, se não queremos alucinar na tentativa de conciliar a liberdade de nosso arbítrio e a contingência de coisas com presciência divina. Um puramente natural, que, consequentemente, de modo algum ele pode sofrer variação em Deus; através dela, ele sabe todas as coisas que o poder divino ─ seja com imediatismo, seja com intervenção das segundas causas – pode fazer, tanto em relação às naturezas individuais necessárias e suas uniões, como em relação às naturezas contingentes, mas não porque vão ocorrer ou não em um determinado, mas porque eles podem ou não ser indiferentemente, sendo este uma característica necessária de tais futuros e, portanto, caem sob a ciência natural de Deus. Outro puramente livre, por meio do qual, sem hipóteses, nem qualquer condição, Deus sabe de maneira absoluta e determinada de todos as uniões contingentes e após o livre ato de sua vontade, o que as coisas vão acontecer realmente e as que não. Finalmente, o terceiro é a ciência média, através da qual Deus vê em sua essência, em virtude da mais alta e inescrutável compreensão de todo livre arbítrio, o que ele faria em razão de sua liberdade inata, se fosse colocado neste ou em que ou mesmo em qualquer das ordens infinitas das coisas, mesmo que em a realidade também poderia, se quisesse, fazer o oposto, como é evidente o que dissemos nas disputas 49 e 50.[2]
Além disso, que algo dotado de livre arbítrio se incline para um ou outro sentido, uma vez colocado em uma certa ordem determinada de coisas e circunstâncias, não é se deve à presciência divina – pelo contrário, Deus pré-sabe isso, porque este algo dotado de livre arbítrio deve fazer livremente isso mesmo -, nem que Deus queira que se faça tal coisa, mas que esse algo dotado de livre arbítrio vai querer livremente fazer tal coisa. A partir daqui, é muito claro que a ciência através do qual Deus prevê, antes de decidir criar este algo dotado de livre arbítrio, o que faria, dada a hipótese de que fosse colocado na referida ordem de coisas, vai depender do que esse algo dotado de livre arbítrio fará, na razão de sua liberdade, isto ou aquilo e não o contrário. Mas a ciência pela qual Deus sabe, absolutamente e sem hipóteses, o que realmente acontecerá sob da livre arbitragem criada, é sempre livre em Deus e depende da determinação livre de sua vontade, pelo qual ele decide criar este livre arbítrio em uma ou outra ordem de coisas.[3]

          O conhecimento médio é baseado em uma supercompreensão das essências das criaturas livres, onde Deus sabe infalivelmente o que cada agente livre vai fazer em virtude do seu livre-arbítrio libertário se colocadas em situação A ou B, mas isso independente do decreto. No calvinismo os futuros hipotéticos dependem de um decreto hipotético, já no molinismo, esses futuros hipotéticos independem de qualquer ação divina, é baseado no que o homem faria ou não faria, ou seja, o homem produz a sentença verdadeira ou falsa independente de Deus. 

O conhecimento médio, diferente de ser o conhecimento daquilo que Deus poderia causar, é o conhecimento daquilo que Deus de forma alguma moveu. A questão se relaciona com as coisas contingentes condicionais futuras, as quais (sendo estabelecida a condição) podem ocorrer e não ocorrer; por exemplo, se João fosse à biblioteca, ele estudaria ou não estudaria, se Jesus fosse crucificado, Pedro poderia negá-lo ou não, etc. O molinista afirma que é possível conhecer, certo e determinantemente, a atitude dos agentes livres, antes do decreto divino. Isso é falso, e deve ser rejeitado, e demonstraremos a seguir o porquê.
Sendo isso verdade, o conhecimento de Deus, no tocante aos atos livres, é determinado pelos futuros atos livres das criaturas. O Dr. William Lane Craig[4], para fugir dessa objeção, responde que Deus conhece as coisas em sua própria essência, portanto saberia o que cada agente livre faria se colocado em cada situação, segundo ele, esse conhecimento está como ideia nata em Deus, portanto Deus não poderia receber essa verdade da criatura. Para chegar a tal conclusão, Dr. Craig estabelece que ser onisciente é conhecer todas as verdades, daí, postula que as “Contrafactuais de liberdade” são verdades, e que Deus deve necessariamente conhecê-las, logo, Deus as conhece por sua onisciência, em si mesmas, não precisando receber essa verdade por parte da criatura.
Várias são as observações a serem feitas aos comentários do Dr Craig. Primeiro é que somente verdades necessárias podem ser conhecidas de forma inata, logo, não se segue que Deus conhecer todas as verdades torne o conhecimento das verdades contingenciais em verdades necessárias para serem conhecidas de forma inata. Segundo, declaramos como falsa a ideia do Dr. Craig de que se Deus conhece as coisas através de sua própria essência, segue-se que esse conhecimento não é causado pelas essências criadas, muito pelo contrário, segue-se que o conhecimento de Deus seria causado pelas criaturas, já que, para os molinistas, as criaturas, antes de qualquer decreto divino, podem determinar-se, causando o que Deus conhecerá pela sua ciência intermediária. A questão principal é que não pode existir um conhecimento da contrafactual somente pelo conhecimento da essência criada, mas deve ser também pelo decreto, pois, sem decreto, não há determinação pelo concurso, o que nos levaria a uma auto-determinação da criatura. Se a criatura se determina, Deus passa a ser o determinado e, portanto, passivo; se passivo, se torna imperfeito. Girolamus Zanchi explica de forma brilhante, que A presciência de Deus, tomada abstratamente, não é a única causa dos seres e eventos; mas sua vontade e presciência juntas. Daí nós encontramos em Atos 2.23, que seu determinado conselho e presciência agem em conjunto; o último resultante e fundado no primeiro.[5]

Ainda quanto às proposições que enunciam verdades necessárias, como 2+2 = 4, cabe acrescentar razões pelas quais essas se diferem das proposições contingentes singulares, como os futuros hipotéticos. Primeiramente pela razão de que estas, diferentes daquelas, não podem ser senão o que são, e por isso enquadram-se no que os escolásticos entendem por “matéria necessária”, por isso o valor verdade de tais proposições não encerra em si uma determinação a mais do que a encontrada na essência mesma de Deus (já que a essência divina é semelhança própria de todos os inteligíveis), antes de todo e qualquer ato de sua inteligência e vontade, e que não podem ser senão o que são, o que as difere substancialmente das verdades dos futuros contingentes, que podem ser ou não ser. Dr. Craig parece cometer o erro primário de confundir proposições em matéria necessária e proposições em matéria contingente, e tomar o meio pelo qual elas são verdadeiras como sendo unívoco: como se o fato de Deus não ser determinado pelas verdades de fulcro necessário o fizesse também não ser determinado pelas verdades de fulcro contingente. E tampouco faz sentido dizer que Deus poderia fazer com que 2+2 fosse 16 e não 4, já que neste caso estamos a falar de proposições em matéria necessária que não podem ser senão daquele modo, em virtude de suas próprias naturezas, naturezas essas que de nenhum modo encerram uma determinação veritativa a mais do que a encontrada na essência divina.
Portanto, no caso das contrafactuais de liberdade humana, que são o objeto formal da ciência média, o conhecimento de Deus é passivo, logo, determinado na exata medida que recebe e é causado pelas determinações e deliberações das essências criadas, que quando postas nestas ou naquelas circunstâncias ou condições por Ele, tornarão as proposições contingentes singulares mais determinadas à existência do que suas contrárias. E Deus sabe isso não porque é a causa desse conhecimento, como alega Dr. Craig, e sim pela supercompreensão do livre-arbítrio criado, como defenderia Molina, que sonda as vontades de forma que conhece o que tais fariam se postas deste ou daquele jeito, ou pela verdade objetiva formal de proposições singulares contingentes, como defendeu Francisco Suarez (Dr. Craig se identifica com o molinismo de Suarez, também chamado de congruísmo ou suarezismo). Em todas estas hipóteses da escola molinista, o meio pelo qual se dá a ciência média, a determinação que constitui as contrafactuais enquanto tal (que o separa do objeto da ciência de simples inteligência e de visão) é causado estritamente pelas causas próximas, e jamais por Deus, e por isso, neste sentido estrito, a ciência média é causada pelas essências criadas, não por Deus; logo, se tais verdades existem, elas não podem ser nata a Deus, nem podem existir independente da vontade dEle, portanto são impossíveis por essas vias.

Fica demonstrada então a inviabilidade do conhecimento médio por tornar Deus um ser determinado, e, portanto, que admite potência passiva, ou seja, imperfeição, já que não tem conhecimento das contrafactuais a partir de si mesmo, mas de outro, que é a criatura. 


Referências
1 TURRETIN. Compêndio de Teologia Apologética . Vol 1. 2011. p 288.

[2]   MOLINA, 2007, p. 446.
[3]MOLINA, 2007, p. 447.
[4]    CRAIG, W.L, MORELAND, J.P. Filosofia e Cosmovisão Cristã.Vida Nova, 2005, p. 635.
[5]   ZANCHI, G. The doctrine of absolution predestination stated and asserted. p. 02-03. Tradução de Joel Pereira. 



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