O uso do termo “livre arbítrio” foi abolido no meio calvinista moderno pelo medo da associação com semi-pelagianos (arminianos, molinistas e alguns papistas) e pelagianos, porém, não era esse o posicionamento dos reformadores. Os reformadores não recusaram seu uso, mas defenderam que deveríamos sempre defini-lo de forma correta. Não pretendo ser exaustivo nesse artigo, apenas mostrar de modo rápido e introdutório como os reformadores viram o uso do termo.
O campeão da escolástica calvinista, Francis Turretin, diz o seguinte:
Não obstante, embora esse nome pareça ufanoso demais, se considerado precisamente em si mesmo (como se o homem existisse por seu próprio poder, o qual pertence própria e tão-somente a Deus, o qual, além do mais, é verdadeira e perfeitamente independente [autexousios] e irresponsável [anvpeuthvnos], e por seu direito ele não depende nem pode depender absolutamentede ninguém). Entretanto, o homem é sempre responsável (hypeuthynos) e sob autoridade (hypexousios). Por essa razão, alguns têm desejado remover o termo do uso da igreja a fim de coibir o abuso dos pelagianos, que disseminaram a peçonha que há sob ele. Contudo, uma vez que ele agora já foi recebido na igreja por um longo uso, não cremos que seja enviado de volta aos filósofos, nos quais tudo indica teve sua origem, mas que deve ser mantido com proveito, se seu sentido correto for ensinado e seu abuso evitado. Por isso, não é possível, sem calúnia, que sejamos acusados de não tolerar nem o nome nem a coisa (livre arbítrio). Pois estamos para demonstrar (mais adiante em referência à coisa) que estabelecemos o livre arbítrio muito mais realmente do que nossos oponentes; assim os escritos de nossos homens ensinam sobejamente que de modo algum repudiamos esse termo quando propriamente entendido. (TURRETIN, F. Compêndio de Teologia Apologética. Vol 1. São Paulo-SP. Cultura Cristã. 2011. p 818.)
John Owen, o chamado príncipe dos puritanos, também é de opinião igual:
Ainda assim, aqui observamos, que nós não nos opomos absolutamente ao livre-arbítrio, como se ele fosse “nomen inane”, uma mera invenção, quando não existe tal coisa no mundo, mas apenas no sentido que os Pelagianos e os Arminianos o afirmam. A respeito de palavras, nós não lutaremos. Nós consentimos que o homem, na substância de todas as suas ações, tem tanto poder, liberdade e independência como uma mera natureza criada é capaz disto. Consentimos que ele seja livre em sua escolha de todas as suas ações exteriores, ou interiores necessidades naturais, a agir de acordo com a sua escolha e deli-beração, abraçando espontaneamente o que bem lhe parecer. Agora, chame esse poder de livre-arbítrio ou do que você quiser, de forma a fazê-lo não supremo, nem independente e sem limites, e nós não somos atribulados de modo algum. A imposição de nomes depende do critério de seus inventores. Mais uma vez; mesmo nas coisas espirituais, negamos que nossas vontades sejam de todo impedidas ou privadas de liberdade adequada, mas dizemos aqui que, de fato, nós não somos propriamente livres até que o Filho nos liberte. (OWEN, J. Contra o Arminianismo e seu Ídolo Pelagiano o Livre Arbítrio. Estandarte de Cristo. Francisco Morato-SP. S/D. P 162.)
O próprio João Calvino ao comentar a obra de Lutero, afirma que é herege quem nega a existência do livre arbítrio:
Se se fala de liberdade em oposição à coerção (coactio), confesso e afirmo constantemente que a vontade é livre (liberum esse arbitrium) e considero herege quem pensa o contrário. Se, repito, alguém o chamar de livre no sentido de que a vontade não é coagida (coagatur) ou puxada violentamente por algum movimento externo, mas tem seus atos por sua própria iniciativa (sponte agatur sua), não tenho objeção. (CALVINO, J. Def. serv. arb. OC6. 279f., 303, 310f.)
O termo livre arbítrio pode ser visto em nossas confissões, enquanto o uso do termo “livre agência” é totalmente desconhecido. A Segunda Confissão Helvética, em sua seção 9, reza o seguinte:
O homem pratica o mal por sua própria vontade. Portanto, quanto ao mal ou ao pecado, o homem não é forçado por Deus ou pelo Diabo, mas pratica o mal espontaneamente e nesse sentido ele tem arbítrio muito livre. Mas o fato de vermos, não raro, que os piores crimes e desígnios dos homens são impedidos por Deus de atingir seus propósitos não tolhe a liberdade do homem na prática do mal, mas é Deus que pelo seu próprio poder impede aquilo que o homem livremente determinou de modo diverso. Assim, os irmãos de José livremente determinaram desfazer-se dele, mas não o puderam, porque outra coisa parecia bem ao conselho de Deus.
O livre arbítrio é fraco nos regenerados. Segundo, nos regenerados permanece a fraqueza. Desde que o pecado permanece em nós, e nos regenerados a carne luta contra o espírito até o fim de nossa vida, eles não conseguem realizar livremente tudo o que planejaram. Isso é confirmado pelo apóstolo em Rom 7 e Gal 5. Portanto, é fraco em nós o livre arbítrio por causa dos remanescentes do velho Adão e da corrupção humana inata, que permanece em nós até o fim de nossa vida. Entretanto, desde que os poderes da carne e os remanescentes do velho homem não são tão eficazes que extingam totalmente a operação do Espírito, os fiéis são por isso considerados livres, mas de modo tal que reconhecem a própria fraqueza e não se gloriam de modo algum em seu livre arbítrio. Os fiéis devem ter sempre em mente o que Santo Agostinho tantas vezes inculca, segundo o apóstolo: “o que tendes que não recebestes? Se, pois, o recebestes, por que vos vangloriais, como se não fosse um dom?” A isso ele acrescenta que aquilo que planejamos não acontece imediatamente, pois os resultados das coisas estão nas mãos de Deus. Esta a razão por que São Paulo ora ao Senhor para promover sua viagem (Rom 1.10). E esta é também a razão pela qual o livre arbítrio é fraco.
Nas coisas externas há liberdade. Todavia, ninguém nega que nas coisas externas tanto os regenerados como os não-regenerados gozam de livre arbítrio. O homem tem em comum com os outros animais (aos quais ele não é inferior) esta natureza de querer umas coisas e não querer outras. Assim, ele pode falar ou ficar calado, sair de sua casa ou nela permanecer, etc. Contudo, mesmo aqui deve-se ver sempre o poder de Deus, pois essa foi a causa por que Balaão não pôde ir tão longe quanto desejava (Num, cap. 24), e Zacarias, ao voltar do templo, não podia falar como era seu desejo (Luc, cap. 1).
Heresias. Nesta questão, condenamos os maniqueus, os quais afirmam que o início do mal, para o homem bom, não foi de seu livre arbítrio. Condenamos, também, os pelagianos, que afirmam que um homem mau tem suficiente livre arbítrio para praticar o bem que lhe é ordenado. Ambos são refutados pela Santa Escritura, que diz aos primeiros: “Deus fez o homem reto”; e aos segundos: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (João 8.36).(http://www.monergismo.com/textos/credos/seg-confissao-helvetica.pdf . Acesso em 29/08/2021)
Também Jerônimo Zanchi:
Que esta era a doutrina de Lutero, ninguém pode negar, que esteja em qualquer medida familiarizado com suas obras, particularmente com seu tratado De Servo Arbitrio, ou O livre arbítrio escravo, a principal prova do livro é, que a vontade do homem é por natureza escravizada apenas ao mal, porém, por ela gostar dessa escravidão, é dito, portanto, que também é livre. (ZANCHI, Jerônimo. A Doutrina da Predestinação Absoluta. Theóphilus. São Luís-MA. 2021. p 31).
William Twisse, presidente da Assembléia de Westminster:
É totalmente falso que qualquer um de nossos Divinos, de meu conhecimento, diga que pelo pecado de Adão, toda a sua posteridade perdeu seu livre arbítrio; No tempo de minha mentoria na Universidade, em disputas de divindade, ouvíamos a respeito do livre arbítrio, uma distinção como esta de curso comum. As ações dos homens são naturais, morais ou espirituais; a resolução da verdade, no que diz respeito ao livre arbítrio, de acordo com a distinção mencionada, foi esta: não perdemos nosso livre arbítrio, em ações naturais, nem em ações morais, mas tão somente em ações espirituais. (TWISSE. W. The Five Points of Grace & of Predestination: Defined and Defended Against an Arminian Remonstrant – p 8)
É de particular observação que a própria confissão alega ser heresia negar que a queda teve como causa o livre arbítrio de Adão. Infelizmente, a maioria dos calvinistas modernos são condenados pelos seus próprios documentos.
4 respostas em “É CORRETO USAR O TERMO LIVRE-ARBÍTRIO? Respondemos que sim, mas fazemos as devidas distinções.”
Boa noite
Um excelente texto, bem explicativo. A forma didática como apresentada aqui no texto faz com que o tema seja melhor compreendido.
Texto irretocável e que exibe o teor do uso dos termos pelos pais reformadores calvinistas clássicos dos séculos iniciais da ortodoxia reformada.
Relendo novamente. Muito esclarecedor.
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