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“Unigenitus” (1713) vs Estudo Pessoal das Escrituras: Resposta a Dave Armstrong

Primeiramente gostaria de agradecer ao Senhor Dave Armstrong (“Armstrong” daqui em diante) pela oportunidade do debate.

Ficou definido entre mim e Armstrong que eu poderia escolher qualquer um de seus artigos para refutar. Escolhi então o artigo de título: “Unigenitus” (1713) vs Personal Bible Study?”

INTRODUÇÃO

O artigo trata de uma defesa contra um blog protestante que acusa a Igreja de Roma de ter proibido a leitura da Escritura através da emissão da Bula Unigenitus, uma Constituição Apostólica promulgada pelo Papa Clemente XI em 1713.

Você poderá conferir a leitura completa do artigo do senhor Armstrong nesse link:

Meu objetivo não é fazer uma defesa sistemática do Blog protestante, mas refutar as afirmações proferidas pelo senhor Armstrong no decorrer do artigo. As citações estarão entre aspas e itálico para não correr o perigo de serem confundidas no decorrer da defesa ao serem transportadas para o Blog.

Dois pontos centrais são afirmados pelo senhor Armstrong: o primeiro é que a Igreja de Roma nunca proibiu a leitura da Escritura, ele diz na conclusão do seu artigo:

O “Unigenitus” (1713) do Papa Clemente XI proibiu a leitura da Bíblia? Não.”

O segundo é que similarmente os calvinistas fizeram o mesmo:

Também mostro como outros decretos católicos não são anti-bíblicos, e que os calvinistas criticaram similarmente obras “errôneas”.

Na primeira parte do artigo Dave Armstrong cita com aprovação os argumentos do apologista católico Jimmy Akin, logo após faz suas próprias considerações sobre a Unigenitus e, em ato contínuo, faz algumas observações sobre os calvinistas. Procederemos a explanação nessa ordem e veremos se as conclusões do senhor Armstrong se seguem dos seus argumentos.

A escolha desse artigo se deu por vários motivos. O primeiro é que de fato foi o primeiro que eu li. Segundo, ele toca no ponto mais importante da Reforma após o debate sobre a Justificação Somente pela Fé. Terceiro, a partir dele podemos desenvolver outros temas como a infalibilidade Papal e do magistério romano e Sola Scriptura, pontos esses que desenvolveremos durante esses dias.

CONSTITUIÇÃO APOSTÓLICA “UNIGENITUS”

A Unigenitus foi um documento emitido pelo Papa Clemente XI que condenou a leitura da Escritura Sagrada por todos os cristãos. A Bula preparada cuidadosamente em 17 assembléias de teólogos e 23 de cardeais. A citada é uma “constituição apostólica”, ou seja, é um documento solene emitido pelo Papa com a finalidade de estabelecer um ensino de fé para o rebanho.

As teses condenadas foram:

79. É útil e necessário em todos os tempos, em todos os lugares e para todo tipo de pessoa, estudar e conhecer o espírito, a piedade e os mistérios da Sagrada Escritura.

80. A leitura da Sagrada Escritura é para todos.

81. A sagrada obscuridade da Palavra de Deus não é motivo para que os leigos se dispensem de lê-la.

82. O Dia do Senhor deve ser santificado pelos cristãos com leituras de obras piedosas e sobretudo das Sagradas Escrituras. É prejudicial para um cristão desejar retirar-se desta leitura.

83. É uma ilusão persuadir-se de que o conhecimento dos mistérios da religião não deve ser comunicado às mulheres pela leitura das Sagradas Escrituras. Não da simplicidade das mulheres, mas do orgulhoso conhecimento dos homens surgiu o abuso das Escrituras e as heresias nasceram.

84. Arrebatar das mãos dos cristãos o Novo Testamento, ou mantê-lo fechado contra eles, tirando-lhes os meios de compreendê-lo, é fechar-lhes a boca de Cristo.

85. Proibir os cristãos de ler a Sagrada Escritura, especialmente os Evangelhos, é proibir o uso da luz aos filhos da luz e fazê-los sofrer uma espécie de excomunhão.

Declarado e condenado como falso, capcioso, maldoso, ofensivo aos ouvidos piedosos, escandaloso, pernicioso, temerário, injurioso para a Igreja e sua prática, insultando não só a Igreja mas também os poderes seculares sediciosos, ímpios, blasfemos, suspeitos de heresia, e cheirando à própria heresia, e, além disso, favorecendo hereges e heresias, e também cismas, errôneas, próximas à heresia, muitas vezes condenadas, e finalmente heréticas, renovando claramente muitas heresias respectivamente e principalmente aquelas que estão contidas no infame proposições de Jansen, e de fato aceitas no sentido em que foram condenadas.

Inocêncio XIII 1721-1724 Bento XIII 1724-1730 Clemente XII 1730-1740

(Denzinger, The Sources of Catholic Dogma , trad. Roy J. Deferrari, [Loreto Publications], da trigésima edição do Enchiridion Symbolorum de Henry Denzinger , [Herder & Co., Freiburg, 1954], #1429-1435, 1451, pp 352, 354). Aprovação eclesiástica: [“ Nihil Obstat ”, Dominic Hughes, OP Censor Deputatus, “ Imprimatur ”, 25 de abril de 1955, Patric A. O’Boyle, Arcebispo de Washington].” (citado diretamente do artigo do senhor Armstrong)

A Constituição é claríssima, a Igreja de Roma proibiu a leitura da Sagrada Escritura por todos os cristãos, por todos os homens, isso ecoa os cânones do Concílio de Trento, na Seção Concernente aos Livros Proibidos, Regra IV que diz:

Considerando que é evidente pela experiência que, se os livros sagrados são permitidos indiscriminadamente na língua vulgar, mais dano do que utilidade advém deles em razão da temeridade dos homens, a esse respeito dependa do arbítrio do bispo ou inquisidor, para que, com o conselho do pároco ou do confessor, lhes concedam a leitura dos livros traduzidos por autores católicos na língua vulgar, as pessoas que considerem não sofrerem dano, mas aumento de fé e de piedade de tal leitura; qual poder eles podem ter com respeito às escrituras. Mas quem ousar lê-los sem tal poder, não poderá obter a absolvição de seus pecados, a menos que primeiro tenha devolvido os livros ao ordinário. Mas os livreiros, que venderão a Bíblia escrita na língua vulgar, do mesmo bispo. Mas os regulares não devem ter o poder de lê-los ou comprá-los, a menos que tenham o poder de fazê-lo de seus prelados.” (https://en.wikisource.org/wiki/Canons_and_Decrees_of_the_Council_of_Trent/Second_Part/Concerning_Prohibited_Books)

Entende-se pela leitura dos dois documentos que tratam sobre o mesmo tema, que a leitura é somente para pessoas autorizadas, que detém um certo tipo de conhecimento, ou seja, a pessoa simples não pode ter uma Bíblia em casa, muito menos fazer sua leitura sem sofrer uma sanção da Igreja de Roma.

Isso é confirmado pelas citações do apologista Jimmy Akin feitas por Armstrong. O apologista diz ao comentar a condenação da tese de número 79:

79. É útil e necessário em todos os tempos, em todos os lugares e para todo tipo de pessoa, estudar e conhecer o espírito, a piedade e os mistérios da Sagrada Escritura.

 A palavra mais problemática que Quesnel colocou nessa proposição é “necessário”. É realmente  necessário  que  em todos os tempos, em todos os lugares,  todo  tipo de pessoa  estude os mistérios da Sagrada Escritura? . . .

Problemas semelhantes se repetem se nos concentrarmos na palavra  útil . É realmente útil em todos os momentos, em todos os lugares, para todo tipo de pessoa? E os que não estão preparados?

Aqui, fica claro que a Igreja de Roma realmente julga que existem pessoas que não precisam da leitura da Escritura, mas, pior ainda, que a leitura da Bíblia é prejudicial para algumas pessoas. Fica confirmado também, não só aqui, mas no decorrer do texto, que a Igreja de Roma defende que a Escritura não é para todos os homens, que o conhecimento é devido aos poucos que pertencem a um determinado grupo, basicamente isso é gnose.

O autor continua: Parece-me, assim, que a preocupação com esta proposição é bastante provável – como coloca o leitor – “estamos preocupados com as pessoas lendo e tendo uma visão errada, então não leia sem a devida preparação”.Não parece ser “Rejeitamos a ideia de estudo individual das Escrituras, uma vez que as Escrituras não são claras”. Se uma pessoa tem uma preparação adequada (tem uma base adequada na fé, não vai tirar conclusões heréticas, está bem informada sobre os métodos de interpretação das Escrituras, etc.), então o que haveria de errado com ela estudando por conta própria? Certamente a rejeição da proposição como de alguma forma problemática não acarreta tal conclusão – uma conclusão que a Igreja nunca sustentou.

Quanto à tese 80. A leitura da Sagrada Escritura é para todos. Ele diz:

 Isso parece ser censurável pelos mesmos motivos da proposição anterior. Novamente: E aqueles despreparados para o estudo individual?

Notem as partes em negrito e veja que o autor não sabe se é realmente assim, ele apenas especula ser assim. Os termos “é provável”, “parece ser”, mostram que a interpretação é Ad Hoc no intuito de defender a Igreja de Roma de algo que hoje ela não defende mais, mas defendeu no passado.

O autor usa de tanta subjetividade que ao comentar a condenação das teses onde o documento declara e condena “como falso, capcioso, maldoso, ofensivo aos ouvidos piedosos, escandaloso, pernicioso, temerário, injurioso para a Igreja e sua prática, insultando não só a Igreja mas também os poderes seculares sediciosos, ímpios, blasfemos, suspeitos de heresia, e cheirando à própria heresia, e, além disso, favorecendo hereges e heresias, e também cismas, errôneas, próximas à heresia, muitas vezes condenadas, e finalmente heréticas, renovando claramente muitas heresias respectivamente e principalmente aquelas que estão contidas no infame proposições de Jansen, e de fato aceitas no sentido em que foram condenadas.” afirma arbitrariamente que “nem todas as proposições são problemáticas da mesma maneira, então você tem que olhar para as condenações específicas que são aplicadas a elas. . . .” para logo após afirmar que “Mas, exceto por proposições previamente condenadas em relação ao jansenismo, o documento não tenta dizer quais censuras se aplicam a quais proposições. . . .” ou seja, segundo o autor, não se sabe o que realmente a Unigenitus condenou, então deixa por conta do leitor atribuir quais são os adjetivos condenatórios aplicados para cada tese condenada, vemos aqui o Livre Exame tão condenado pelos católicos romanos sendo posto em prática, e o pior, assumidamente subjetivo, onde o critério é a cabeça de quem analisa o documento, pois o documento mesmo não diz em qual sentença cada uma das teses foi enquadrada. Confirma-se que é uma mera interpretação Ad Hoc quando o mesmo diz: [C]ada proposição condenada em Unigenitus cai sob  pelo menos uma  dessas censuras. Pode cair em mais de um, mas cai em pelo menos um. Alguns são falsos. Alguns são capciosos. Alguns soam mal. Alguns são ofensivos para ouvidos piedosos. Alguns podem ser falsos  e  capciosos. etc. Quais? Posso escolher qual? Posso dizer que todas elas apenas soam mal e ninguém foi de fato condenado? O que é “alguns”? “Alguns” nesse contexto e do modo como está sendo empregado é igual a “qualquer um”!

Convenhamos que isso nada explica, pois se o objetivo de uma Constituição Apostólica é exortar os fiéis e estabelecer um ensino de fé para o rebanho, então como eu exortarei se eu não sei em qual condenação cai cada tese? A verdade é que se todas elas não caem em todos os adjetivos condenatórios, pelo menos cai em sua maior parte, essa seria a leitura natural do texto.

O autor não esconde que faz uma leitura subjetiva. Todos os comentários das teses estão recheados com termos especulativos (parece ser, é provável), na tese 84 aparece um comentário que supera os demais:

84. Arrebatar das mãos dos cristãos o Novo Testamento, ou mantê-lo fechado contra eles, tirando-lhes os meios de compreendê-lo, é fechar-lhes a boca de Cristo.

Anteriormente, referenciamos uma censura de algumas proposições como “capciosas”. Este termo significa, grosso modo, uma descoberta de falhas sem caridade. Em outras palavras, ser injusto com aqueles que você está criticando por uma atitude rancorosa e crítica. Em outras palavras, ser hipercrítico e hostil. Eu poderia facilmente ver esta proposição como sendo capciosa. Caracteriza a Igreja como “arrebatando das mãos dos cristãos o Novo Testamento”. . . . Essa interpretação confirma minha tese, o autor simplesmente quis ver, ou viu, segundo seu próprio livre exame que tal proposição era “capciosa”, ele escolheu um adjetivo e atribuiu. Minha visão sobre essa interpretação é que o apologista faz uma defesa do documento, porém quer enfraquecer sua condenação para não parecer o que o documento de fato é: uma condenação cabal à leitura da Escritura por todos os crentes sem exceção. Mais importante que isso é que autor confirma o meu ponto central: a Igreja de Roma proibiu a leitura da Sagrada Escritura pelos leigos. A leitura da Escritura Sagrada não é para todos. Mas estranhamente o senhor Armstrong afirma:

O “Unigenitus” (1713) do Papa Clemente XI proibiu a leitura da Bíblia? Não.”

Essa declaração é dúbia quando tomada isoladamente, pois pode significar que o Papa Clemente XI proibiu a leitura da Bíblia para o Clero, aí a resposta seria não, mas pode significar que o Papa Clemente proibiu a leitura da Escritura por todos os cristãos, aí a resposta não poderia ser um “não”, mas teria que ser um “sim”. A questão é que o Clero ser autorizado a ler a Escritura nunca foi tema de debate, logo o senhor Armstrong está querendo dizer que nenhum católico romano foi proibido de ler as Escrituras, seja leigo ou do clero, o que é fatalmente contraditório com o que o próprio apologista Jimmy Akin disse e que foi citado com aprovação pelo senhor Armstrong. Jimmy Akin, embora tentando tornar mais leve a condenação, foi muito honesto intelectualmente ao assumir que a Igreja de Roma não defende que todas as pessoas leiam a Escritura, diferente de apologistas brasileiros que ensinam que nunca um católico romano foi proibido examinar a Sagrada Escritura:

(algum católico já foi proibido de examinar a Bíblia?) Fábio Salgado, conhecido apologista brasileiro, faz essa pergunta retórica para afirmar que nunca, em momento algum, um católico foi proibido de examinar a Sagrada Escritura.

As afirmações do senhor Armstrong são contraditórias com as afirmações que Jimmy Akin faz, mas surpreendentemente o mesmo o cita com aprovação. Digno de nota é que alguns bispos da França, que discordaram do teor da Bula, fizeram apelo ao Papa Clemente XI para um concílio geral e foram por isto excomungados com a Bula “Pastoralis officii” de 28 agosto de 1718.

Mas mais contraditórias sãos as resoluções dogmáticas do Concílio Vaticano II em sua Constituição Dei Verbum, contrariamente às decisões de Trento e da Bula Unigenitus afirma:“É preciso que o acesso à Sagrada Escritura seja amplamente aberto aos fiéis” (Dezinger, 4229) Novamente: “Este Sagrado Concílio exorta com ardor e insistência todos os fiéis, mormente os Religiosos, a que aprendam a eminente ciência de Jesus Cristo (Filipenses 3,8) mediante a leitura frequente das Divinas Escrituras, porque a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo. Debrucem-se, pois, gostosamente sobre o texto sagrado, quer através da Sagrada Liturgia, rica de palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se vão espalhando…, com a aprovação e o estímulo dos pastores da Igreja. Lembrem-se, porém, de que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada da oração, para que seja possível o colóquio entre Deus e o homem; com Ele falamos quando rezamos; a Ele ouvimos quando lemos os divinos oráculos.” (Dezinger, 4233-4235)

Antes era condenado, agora é aprovado:


Antes (Bula Unigenitus)

Depois (Dei Verbum)




CONDENAMOS:
80. A leitura da Sagrada Escritura é para todos.
82. O Dia do Senhor deve ser santificado pelos cristãos com leituras de obras piedosas e sobretudo das Sagradas Escrituras. É prejudicial para um cristão desejar retirar-se desta leitura.
84. Arrebatar das mãos dos cristãos o Novo Testamento, ou mantê-lo fechado contra eles, tirando-lhes os meios de compreendê-lo, é fechar-lhes a boca de Cristo.
APROVAMOS:

“É preciso que o acesso à Sagrada Escritura seja amplamente aberto aos fiéis”
exorta com ardor e insistência todos os fiéis, mormente os Religiosos, a que aprendam a eminente ciência de Jesus Cristo (Filipenses 3,8) mediante a leitura frequente das Divinas Escrituras, porque a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo.




Contrariamente às antigas declarações de Roma o Papa Francisco, que é atual Papa, também afirma que a leitura da Bíblia é para todos, e ainda distribui exemplares:

Demos espaço à Palavra de Deus! Leiamos diariamente algum versículo da Bíblia. Comecemos pelo Evangelho: mantenhamo-lo aberto na cômoda de casa, tragamo-lo conosco no bolso, visualizemo-lo no telemóvel, deixemos que nos inspire todos os diasOs participantes na Missa receberam uma edição especial da Bíblia, autografada pelo Papa: “Lê a Palavra de Deus que tens entre as mãos e escuta a voz do Senhor que te indica o caminho da vida. Domingo da Palavra de Deus, 26 de janeiro de 2020”, é a mensagem que Francisco escreve em cada exemplar. (https://agencia.ecclesia.pt/portal/vaticano-papa-convida-catolicos-a-ler-a-biblia-todos-os-dias-do-papel-ao-digital/)

Será que o Papa verificou se cada um dos ouvintes eram homens preparados e eruditos para lerem a Escritura? Onde está a infalibilidade papal e do magistério com uma contradição tão patente? Excomungarão o Papa Francisco como fizeram com os Bispos franceses? Claro que não, o Concílio Vaticano II agora contradiz o Concílio de Trento e também a Bula Unigenitus.

Dave Armstrong, agora de próprio punho, afirma que a proibição contida na Unigenitus era das traduções não autorizadas e da “negligência do elemento necessário de interpretação autorizada de acordo com os ensinamentos do cristianismo desde o início.” Ou seja, confirma-se que a leitura para leigo foi proibida, mesmo da versão autorizada, mas nada se vê em seu artigo sobre as Bíblias vendidas nas lojas católicas para qualquer pessoa comprar, além de que ninguém hoje é excomungado por ter uma tradução protestante em casa e, o próprio Papa distribui Bíblias aos leigos. Somente um dos dois estão certos: ou a Unigenitus está certa ou o Papa está em heresia e a Igreja de Roma está sendo conivente com o erro da venda de Bíblias a qualquer pessoa.

Dito isso acima, encerro essa parte afirmando que a Igreja de Roma proibiu sim a leitura da Escritura pelos leigos, e que o magistério de Roma se contradiz ao permitir o que dantes foi infalivelmente proibido.

A LEITURA DA ESCRITURA PODE SER PROVEITOSAMENTE LIDA POR QUALQUER CRISTÃO?

Introdução

Já foi demonstrado e confirmado que a Igreja de Roma, no passado, condenou que a leitura da Escritura fosse feita por todos os fiéis. Apesar de papas posteriores afirmarem o contrário, o artigo do senhor Armstrong cita um apologista católico romano que defende o que foi dito na Unigenitus: de que a leitura da Escritura não é para todos, contrariando também o parecer da atual de sua própria Igreja. A verdade é que o apologista Jimmy Akin está de acordo com a ortodoxia de Roma, pois antes da Unigenitus os cânones e decretos do Concílio de Trento, na Seção Concernente a Livros Proibidos, em sua Regra IV, já ensina que a leitura da Sagrada Escritura, mesmo em sua versão autorizada, só poderá ser feita com a permissão do Bispo ou inquisidor.

Porém, como também vimos que o Magistério cai em contradição ao simplesmente negar os Cânones do Concílio Ecumênico de Trento e a Constituição Apostólica Unigênitus, dois documentos infalíveis, pelo menos em teoria.

O objetivo dessa seção é esclarecer alguns pontos sobre a questão do dogmatismo calvinista como foi citado pelo senhor Armstrong, pois ressaltando as diferenças mostraremos qual é a tênue linha entre uma e outra.

A Opinião dos Católicos Romanos vs Opinião dos Protestantes

Os católicos romanos proibiram a leitura da Escritura a todos sem exceção. A doutrina católica romana ensina que somente pessoas expressamente autorizadas pelo Bispo ou pelo inquisidor possa ter acesso a Escrituras e a também livros acadêmicos, mesmo escrito por católicos romanos. Para isso, o fiel deve ter uma credencial.

Os protestantes, por outro lado, defendem que toda e qualquer pessoa possa ler a Escritura, e para isso não precisa da autorização do Bispo ou de qualquer sacerdote. Armstrong acerta ao citar o Concílio de Dort como dogmático e também acerta ao afirmar que a Igreja também rejeitava versões não autorizadas da Escritura. Isso de fato é correto, a questão é que não foi vedado a ninguém ler as versões autorizadas em seu lar.

Agora devemos fazer algumas distinções: não é que a leitura da Escritura seja absolutamente necessária a todos homens para serem salvos, pois as crianças são salvas e, igualmente os iletrados, mesmo sem ele mesmo fazer a leitura da Sagrada Escritura. A questão é que não pode proibir a ninguém de ler a Escritura caso possa ou queira ler. Imaginem prender um homem simples, no aconchego do lar pelo crime de estar lendo a Bíblia, acham isso razoável?

Na minha infância eu conheci um senhor de avançada idade, o grande irmão Pedro, que era totalmente iletrado, mas citava de memória passagens enormes da Escritura porque pedia para sua neta ler em voz alta para que ele ouvisse. Nunca o vi debatendo assuntos complexos da teologia, mas a Escritura era conforto em momentos difíceis, ele aprendeu sobre Jesus e a admirá-lo. Nenhuma grande heresia da história veio da pena de um iletrado, vejam Ário, Pelágio, Nestório, Orígenes, homens cultos e os maiores hereges da história. Qual foi a grande heresia que veio de um homem simples para que fosse retirada esse conforto de tais pessoas que tão pouco tinham? A proibição é injustificada. A Escritura é o maior tesouro que Deus deu aos homens, é um crime hediondo proibir seu acesso.

A questão não é se a Igreja pode ensinar, aliás a Igreja deve ensinar, é uma das missões da Igreja, nem se o catecúmeno deve ser guiado a ler primeiramente determinados livros e ser instruído a ler outros quando tiver mais capacidade, a questão é se a leitura deve ser proibida a todos, isso negamos.

Quando se fala do dogmatismo calvinista e de suas proibições de versões não autorizadas, que fique registrado que nunca defendemos que a leitura não é para todos.

Armstrong reclama que há uma “contínua incapacidade (ou falta de vontade) de distinguir entre a Bíblia e as traduções “não autorizadas” da Bíblia, bem como a negligência do elemento necessário de interpretação autorizadade acordo com os ensinamentos do cristianismo desde o início”. A questão é que a Igreja de Roma aplicou a regra também para versões autorizadas, não somente para as não autorizadas. O senhor Armstrong continua:

Os calvinistas até tinham seus próprios concílios e uma espécie de “excomunhão”: o principal deles foi o Sínodo de Dort em 1618-1619. Seus cânoneslêem pouco diferentemente (em seu “dogmatismo”) dos decretos católicos tridentinos e papais, condenando dezenas de crenças de colegas protestantes (arminianos) que diferem das últimas inovações e tradições de homens do calvinismo (ambos os lados, é claro, apelando para as Escrituras em relação a todos suas crenças).”

Quero chamar atenção para duas declarações:

1 – Gostaria de saber quais são as inovações que a TULIP trouxe, posso afirmar com toda certeza que a TULIP está dentro da ortodoxia da Igreja Ocidental, e o desafio a provar o contrário.

2 – A segunda é a declaração entre parênteses que está implícita a ideia de que a divisão dentro dos cantões calvinistas se deu pela livre interpretação das Escrituras.

Quanto à primeira, esperarei qualquer declaração de sua parte em possível réplica, se o mesmo quiser fazer.

Quanto à segunda, objeto que a existência de um magistério e um Papa igualmente infalíveis não evitaram que existissem divisões. Dentro da Igreja de Roma temos os tomistas (e suas várias escolas como Banheziana e Zumeliana), molinistas (que discordam frontalmente de princípios tomistas fundamentais como o quidquid mo­vetur ab alio movetur “tudo que se move é movido por outro”, além de pregar uma eleição condicional e ser um semi-pelagianismo escancarado, removendo claramente os marcos antigos visto que tal doutrina foi condenada em vários concílios na história da Igreja, mas hoje Roma vê com bons olhos. Os escotistas que discordam dos tomistas em aspectos profundamente ontológicos, embora concordem quanto a doutrina da predestinação. Durandistas que negam a concorrência divina, Suaristas e suas diversas escolas e o que dizer dos proponentes da “Nouvelle Théologie” com Lubac e Rahner? Os católicos romanos não são capazes sequer de definir quais são os seus concílios ecumênicos, como o 10º Concílio Ecumênico, o II Concílio do Latrão iniciado em 4 de Abril de 1139, que mantém a sua ecumenicidade em caráter controverso (Dezinger 715-718), também tem caráter controverso o Vaticano II que é questionado por várias autoridades romanas e, diga-se de passagem, não chegam ao consenso nem de quem é o atual Papa! Tem gente (sedevacantistas) que acredita que nem Papa existe na cadeira de São Pedro hoje, e quem não lembra da controvérsia entre João XII e Bento V? Qual Papa era o legítimo? Até hoje não se sabe. O papado nunca foi capaz de resolver tais controvérsias e Armstrong nos critica por conseguir resolver as nossas?

As tantas divisões atualmente dentro da Igreja de Roma, que vão muito além do que foi dito acima, já serve de prova cabal, do efeito para a causa, de que o magistério infalível e o Papa infalível são totalmente ineficientes para resolver controvérsias.

Os diversos versículos citados pelo senhor Armstrong provam, de fato, que a leitura da Escritura não torna a instrução oral e as diretrizes pastorais desnecessárias, isso afirmamos, o que negamos é a proibição da leitura da Escritura.

Para encerrar, o senhor Armstrong diz que a Igreja de Roma se Opõe-se ao entendimento incompleto de que somente a Escritura é uma autoridade infalível. A Igreja Católica ensina que a Igreja e a tradição sagrada também são infalíveis e estão sempre em harmonia com a Sagrada Escritura.

Os reformadores não teriam tantas objeções a essa sentença, mas teriam em relação ao seu conteúdo. Entendemos que somente a Escritura é autoridade infalível, afinal de contas o próprio Senhor Jesus Cristo diz: “as Escrituras não podem falhar” Jo 10.35, nunca se é dito que a tradição não pode falhar, muito pelo contrário, Cristo faz várias declarações contra tradições correntes em sua época que eram tidas como verdadeiras, mas eram falsas justamente pela falta de apoio escriturístico, era assim que era definida uma Tradição verdadeira e uma falsa tradição, o seu apoio nas Escrituras. O que não tinha apoio nas Escrituras era chamado de tradição de homens. Assim declara Nosso Senhor:

“Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição?” (Mateus 15:3).

Onde estava o mandamento de Deus a qual Cristo se referia?

“E, assim, invalidastes a palavra de Deus, por causa da vossa tradição” (Mateus 15:6).

A Escritura aqui é chamada de Palavra de Deus.

“E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens” (Mateus 15:9).

A questão é que todo ensino que não se enquadre nas Escrituras deve ser rejeitado, porque somente Ela é infalível. Ensinos como indulgências, veneração de imagens, imaculada concepção de Maria, Assunção de Maria, purgatório e tantos outros ensinos estão longe de serem escriturísticos.

Por isso a Igreja é Infalível sim, mas somente enquanto declaram as verdades em consonância com a Escritura, ela não é infalível por si só. A Tradição também é infalível se estiver de acordo com a Escritura. A Escritura é Palavra de Deus, ela é a “lâmpada que ilumina os meus passos e luz que clareia o meu caminho…” Salmo 119:105 Ela é quem ilumina a Igreja, não o contrário.

CONCLUSÃO

Concluímos que:

1 – O senhor Armstrong se contradiz ao dizer que nenhum católico romano foi proibido de ler as Escrituras, seja leigo ou do clero e essa declaração é fatalmente contraditória com o que o próprio apologista Jimmy Akin disse e que foi citado com aprovação pelo senhor Armstrong.

2 – O magistério romano age atualmente contra suas resoluções dogmáticas do passado, a incentivar a leitura bíblica por todas as pessoas, distribuir bíblias e não censurar as lojas que vendem bíblia para qualquer pessoa que queira comprar.

3 – Que o senhor Armstrong não consegue provar que a TULIP calvinista foi uma inovação na história da Igreja. (Sub judice)

4 – Que a autoridade infalível do magistério e do Papa não é capaz de resolver as controvérsias dentro de sua própria Igreja.

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