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Calvinismo e Escolasticismo, há alguma relação?

   Que o período pós-reforma foi considerado um período escolástico para os calvinistas e até mesmo para os luteranos, é um fato tão público e notório que sequer precisa de referências. A tradição escolástica dentro do calvinismo é muito forte, embora percebida de forma mais leve em João Calvino, foi em Beza, seu sucessor, que a relação entre Calvinismo, Aristóteles e o escolasticismo se tornou de fato amigável. Beza foi acusado de escolasticismo pelos luteranos, isso foi uma crítica, não foi um elogio, mas isso revela como o método escolástico é definitivamente uma forma característica do calvinismo pós-reforma.

Atualmente, apesar de fazermos uso exaustivo da lógica aristotélica, incoerentemente, alguns a consideram uma filosofia pagã e que por isso deve ser considerada um corpo estranho no cristianismo. Deve-se fazer certas distinções sobre essas afirmações. Que Aristóteles, Platão e outros filósofos gregos não eram cristãos e, por consequência, suas filosofias são pagãs, é um fato inegável, mas disso não se segue que o uso de filosofia grega, portanto pagã, torna quem a usa um pagão, ou que estaríamos substituindo a Palavra de Deus por filosofia, pois se assim fosse, tornaríamos pagãos todos os pais da Igreja, incluindo aquele que deu a base da teologia reformada, o imortal Santo Agostinho. Para Platão Deus era imutável, para Aristóteles Deus era o motor imóvel, o ato puro, e segundo Herman Bavinck,A teologia cristã concordou com essa avaliação. Deus, de acordo com Irineu, é sempre o mesmo, auto-idêntico. Em Agostinho, a imutabilidade de Deus flui diretamente do fato de que ele é o ser supremo e perfeito…A mesma ideia aparece repetidamente nos escolásticos e nos teólogos católicos romanos, tanto quanto nos teólogos luteranos e reformados.1Bavinck diz o mesmo sobre o conceito de eternidade, que os reformadores concordaram, sem adicionar nem tirar, o que primeiramente foi desenvolvido por Agostinho, melhorado em Boécio e, por fim, tomando sua forma final em Tomás de Aquino. O próprio Bavinck era um aristotélico2.

     Fica mais fácil entender o relacionamento entre Calvinismo, escolasticismo e filosofia grega quando entendemos que os reformadores nunca pensaram em criar uma outra Igreja, mas reformar a Igreja Antiga, não era para descartar tudo que foi ensinado pelos Santos, como Agostinho, Anselmo, Tomás de Aquino, mas para corrigir e descartar aquilo que fora considerado desvio. Assim, no calvinismo, digo em sua forma confessional, encontraremos, como está mostrado no livro, elementos fortes do escolasticismo, mesmo que essa verdade seja difícil de engolir para os adeptos de um calvinismo mais recente que demonizaram o escolasticismo, principalmente na abordagem tomista, por causa de sua epistemologia, e acabaram jogando com isso o bebê fora junto com a água suja, algo que foi duramente criticado pelo Dr Sproul3

    O reformador João Calvino incentiva a leitura dos filósofos dizendo que seus ensinamentos são verazes, é lógico que enquanto nos ajuda a entender a Escritura e se submete a ela. Calvino claramente diz:

Quanto, porém, às próprias faculdades da alma, relego aos filósofos que dissertem com mais sutileza. Para que a piedade seja edificada, nos será suficiente uma definição singela. Confesso que as coisas que ensinam são realmente verazes, não apenas agradáveis de se conhecer, como também são proveitosas e por eles habilidosamente coligidas, nem tampouco proíbo de seu estudo aqueles que estão desejosos de aprender.4

      Calvino apesar de ser um platônico, não era menos escolástico por isso. Em verdade, a declaração de Vicente Temudo Lessa, sobre o reformador, é surpreendente:Aplicado à teologia, deleitava-se em Scotus, Boaventura, e, especialmente em Aquino. Não viesse a ser um reformador, como aconteceu, certamente seria um ardente discípulo do Doctor Angelicus. Não foi debalde que o apelidaram de Aquino da reforma protestante.5

Calvino também nunca se posicionou contra novos termos teológicos, mas se opunha a um exagero deles ao ponto que obscurecesse a teologia invés de clarificá-la, como o mesmo diz: Se alguém, então, censura a novidade dos termos, porventura não se julgará, com merecida razão, que não se atenta dignamente para a luz da verdade, visto que está a censurar apenas isto: tornar a verdade clara e lúcida.6Essa obra está dentro do escantilhão de Calvino, pois usa os termos usados pelas confissões e pelos primeiros calvinistas, além de justificar biblicamente tudo que ali está dito.

Calvino, apesar de ver com suspeitas o pensamento de Aristóteles, o período pós-reforma rejeitou totalmente essas suspeitas de Calvino e tornou Aristóteles um forte aliado.7

Zwinglio, que aprendeu grego sozinho para estudar os filósofos da Grécia, disse que o Espírito Santo operou através desses filósofos8, pois esses escritos só poderiam ser explicados através de uma operação do Espírito Santo.
      
     Se lermos a Confissão de Fé de Westminster, por exemplo, encontraremos termos como causa primária, causa secundária, causa contingente, causa necessária, causa livre, substância, natureza, pessoa, contingência, necessidade, espírito puríssimo, que são termos que dificilmente seriam explicados sem a filosofia aristotélica/escolástica. Além disso, a doutrina da simplicidade divina, que foi defendida por todos os calvinistas, e foi desenvolvida no período escolástico, jamais poderia ser explicada sem o apelo a filosofia aristotélica/escolástica. Algo interessante e digno de nota, que ilustra muito bem como se deu a formação da doutrina calvinista após a morte de Calvino, foi que Beza, quando ainda reitor da Academia de Genebra, recusa a um candidato a professor chamado Ramus (fundador do Ramismo) como titular dessa academia, justamente porque o candidato não era Aristotélico (escolástico), vejam como Beza o responde:

O primeiro obstáculo é que no momento não há vaga na Academia, e nossos recursos são tão pequenos que não podemos aumentar o número de professores… O segundo obstáculo jaz em nossa determinação de seguir a posição de Aristóteles, sem desviar uma linha, quer Lógica, quer nas demais áreas de nossos estudos.9

A academia de Genebra era a maior academia de calvinismo do mundo, o que mostra irrefutavelmente como a teologia calvinista tradicional tem laços estreitos com o aristotelismo e, consequentemente com o escolasticismo.

E por que não falaremos do gigante reformado chamado Gisbertus Voetius, também conhecido como Papa de Utrecht, justamente pela sua defesa da ortodoxia calvinista? Foi influente no Sínodo de Dort, e é conhecido pelo seu escolasticismo, também chamado de o maior dos escolásticos10. Gisbertus Voetius usou a tese da pré-moção causal divina, tese essa que foi desenvolvida por Santo Tomás de Aquino, no esteio de Aristóteles. Voetius usa essa tese para debater e combater o falso ensino cartesiano de Descartes11. William Ames era um tomista, e foi o autor mais citado na história do calvinismo, para a surpresa de muitos, ele foi citado mais que Lutero e Calvino juntos. Francis Turretini, que foi o primeiro a escrever baseado nas confissões e cânones de Dort, por isso é considerado como o sistematizador de um calvinismo confessional, é um exemplo de escolasticismo que se nota em uma leitura rápida dos seus escritos recheados de várias citações de Aristóteles, e aos teólogos medievais, em particular, Tomás de Aquino. O mesmo também defendeu as teses de concurso prévio, assim como Voetius, e que estão expostas nesse livro. Girolamo Zanchi, com toda a sua envergadura intelectual, era conhecido comoum calvinista em termos de conteúdo teológico e um tomista em termos de filosofia e metodologia.12

Ainda devemos considerar que não se deve pensar que tudo que foi escrito no período escolástico seja heresia, a linha que separa a heresia da ortodoxia no período escolástico é bem nítida. Por que eu deveria desprezar os argumentos de Santo Anselmo, o pai dos escolásticos, sobre a substituição penal, que é a base da expiação limitada? Muitos calvinistas atualmente, porque não dizer a maioria, são voluntaristas éticos, essa doutrina surgiu com Duns Scotus, no auge da escolástica, posteriormente foi defendida por Zanchi, e há um debate no próprio livro sobre se Calvino tinha ou não essa crença, visto que Gordon Clark, que é voluntarista, usa Calvino para endossar esse ensino.

Podemos citar outros grandes teólogos calvinistas que foram extremamente escolásticos, como Theophilus Gale, Pedro Mártir, John Humfrey, John Owen etc. JKS Reid, observa que em Calvino, Bullinger, Musculus, Vermigli, Beza, Ursinus, Zanchi, Polanus e Perkinsencontramos nesses pensadores, no lado da providência e da causalidade divina abrangente, uma concepção de panergismo escotista (de John Duns Scotist) ou uma concepção escolástica padrão da concordância da vontade divina e humana13, em outras palavras: eram todos escolásticos, de uma forma ou de outra.

Conclusão

Deve-se deixar claro que a filosofia jamais está acima da teologia. A filosofia é uma ferramenta, assim como é o estudo da história, arqueologia e outras ciências que nos ajudam a entender e explicar melhor o ensino escriturístico. Nosso ponto de partida é a Escritura, e ao tentar explicá-la, podemos usar de ferramentas extra-bíblicas. 

Referencias 
1 BAVINCK, H. Dogmática Reformada: Deus e a criação. Cultura Cristã. Vol 2. 2012. p 157-158.
2 Prefácio à edição em inglês de BAVINCK, H. Teologia Sistemática: Fundamentos Teológicos da Fé Cristã. Socep. 2001. p 7.
3 Talvez nenhum outro pensador católico tenha sido mais difamado, mal interpretado e mal compreendido por críticos do que Tomás de Aquino. É amplamente aceito que o erro mais destacado de Tomás foi separar natureza e graça. Essa acusação é uma bobagem completa; nada poderia estar mais longe da verdade. Quem acusa Tomás de separar a natureza e a graça não entendeu o principal de sua filosofia, particularmente com o respeito a sua monumental defesa da fé cristã. (SPROUL. R.C. Filosofia para iniciantes. Vida Nova. 2010. p 69).
4 CALVINO. Institutas. 1.15.6
5 LESSA, V. T. Calvino, 1509-1564, sua vida e obra. Casa Editora Presbiteriana. São Paulo. p 41.
6 Institutas 1.13.3
7 MCGRATH Apud LIMA, L.A. Uma Análise do Chamado “Novo Calvinismo”, de Seu Relacionamento com o Calvinismo e de Seu Potencial para o Diálogo com a Contemporaneidade. Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião. São Paulo. 2009.
8 HANKO. H. Retrato dos Santos Fieis. Fireland. 2013. p 148.
9 BANG, C.O. Armínio, um Estudo da Reforma Holandesa. 2015. Reflexão. p 69.
10 HANKO. H. Retrato dos Santos Fieis. Fireland. 2003. 1 ed p 342
11 RULER, J.A. Nederlands archief voor kerkgeschiedenis / Dutch Review of Church History. Vol. 71, No. 1 (1991), pp. 58-91 NEW PHILOSOPHY TO OLD STANDARDS: Voetius’ Vindication of Divine Concurrence and Secondary Causality. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/24009394?read-now=1&seq=1&fbclid=IwAR0IMl6pfW03myyjbPv2Qzb_5NXtqogX-DufSdAloMe-lr7nLh-UeN-Y-uo#page_scan_tab_contents . Acesso em 17/01/2019.
12 ZANCHI, Girolamo. On The Law in General. CLP Academic. 2012. p. xxii.
13 REID, J.K.S apud The Reformed Freedom of the Will vs. Determinism. Disponível em: https://reformedbooksonline.com/the-reformed-freedom-of-the-will-vs-philosophical-necessity/ Acesso em 26/12/2018.

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