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O Dilema Ocidental: Calvino ou Rousseau?

Por Erik von Kuehnelt-Leddihn

I

Quase todos que assistiram ao filme “O Terceiro Homem” se lembram do comentário sarcástico de um dos protagonistas: “e qual foi a contribuição da Suíça para o mundo? O relógio cuco!”. Muitos, até dentre aqueles que gostam dos suíços e os respeitam, acreditam nessa infeliz verdade. A Suíça (pelo menos como gostam de acreditar) tem excelentes trens, um ótimo serviço hoteleiro, um sistema postal eficiente e um chocolate de qualidade; mas, quando se trata de grandes ideias e contribuições culturais e intelectuais, tem uma participação muito pequena e materialista para ser considerada. Tal ponto de vista reflete a ignorância monumental que caracteriza muitos de nossos contemporâneos. De fato, a Suíça, situada nas encruzilhadas da Europa, sempre foi uma potência intelectual e espiritual — talvez não muito nas Belas Artes, mas certamente nas áreas da filosofia, tecnologia, ciências naturais, medicina, psicologia e, sobretudo, teologia.

Na metade deste século1, três dos teólogos mais influentes da Igreja Reformada eram suíços: Karl Barth, Emil Brunner e Oscar Cullmann2. Na época da Reforma de fato, dois dos três líderes reformadores trabalharam e pregaram na Suíça. Certamente, se fosse possível eliminar uma cidade suíça por completo, do mapa e da história, toda a civilização ocidental não seria o que é hoje, se essa cidade for Genebra; eliminaríamos duas das mais fortes influências na mentalidade ocidental: João Calvino (apesar deste ter nascido na França) e Jean Jacques Rousseau. Sem aquele, a ética de trabalho capitalista e puritana na obra “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” de Max Weber provavelmente nunca teria sido disseminada, e sem esse, o caminho que tomou a Revolução Francesa seria impensável.

Para entender o dilema do mundo ocidental (a hesitação entre o Calvinismo e o método rousseauniano), é necessário ter, sobretudo, conhecimento do real significado da Reforma Protestante. Esta é frequentemente interpretada — como, por exemplo, no filme de Rochemont sobre Lutero — como o início do liberalismo e da democracia, com todas as suas sequelas, como as Nações Unidas e o Medicare3.

Entretanto, a reforma foi, pelo contrário, uma revolução conservadora. O nascimento desta não foi em 1517, a data em que Lutero pregou suas 95 teses, mas meia dúzia de anos antes, no inverno de 1510 e 1511, o qual Lutero passou em Roma. Foi lá, na Cidade Eterna, que o frei agostiniano alemão teve seu primeiro contato com a modernidade. Antes disso, ele havia encontrado o Humanismo somente em sua forma literária; em Roma, ele se deparou cara a cara com a síntese entre Cristianismo e antiguidade, onde o conceito medieval do mundo como um círculo com Deus no centro tinha sido substituído pelo conceito da elipse com dois pontosfocais: Deus e o homem. Lutero perdera a paciência com o que Karl Barth definiu como das katholische Und, “o ‘e’ católico”. Também não conseguia aceitar a doutrina católico-humanista de que tudo verdadeiro, tudo belo, independente de sua origem, deveria ser acolhido e integrado ao baú do tesouro do Cristianismo. Para Lutero, a mentalidade e o clima da Renascença era uma traição a Cristo. A nova era, visivelmente aperfeiçoada na Itália, era o renascimento do paganismo; esta representava o triunfo do racionalismo, o culto à estética e o secularismo, tudo que ele detestava e rejeitava.

Então, é um erro pensar em Lutero como “o primeiro homem moderno” — uma designação mais apropriadamente aplicada à Nicolau de Cusa — ou como \“moderno” em qualquer sentido; ao invés disso, ele era um homem gótico que veio de uma universidade alemã até então nova, de uma área verdadeiramente “colonial”, de onde, pelos muros de Wittenberg, era possível enxergar as cabanas com telhados de palha, habitadas por indígenas eslavos. Quando, para seu horror, chegou ao conhecimento de Lutero que Ulrico Zuínglio, um dos poucos reformadores humanistas, acreditava na possível salvação dos pagãos e esperava ansioso ter conversas com Platão, Aristóteles e outros sábios gregos quando chegasse no céu, ele furiosamente negou o direito de Zuínglio se denominar cristão. Os outros que lideravam o humanismo na época — Reuchlin, Erasmo de Roterdã, Adelsmann, Pirckheimer — todos originalmente favoráveis à reforma, tornaram-se fortemente anti-luteranos assim que descobriram o real posicionamento do frei. Portanto, é evidente que a Reforma começou como uma reação contra o Humanismo e a mentalidade da Renascença. Na Alemanha, o movimento era distintivamente iliberal e anti-intelectual. Era apoiado por realezas absolutistas, ao contrário da concepção do final da Idade Média do monarca restrito pela lei, o princípio rex sub lege; mas, ao mesmo tempo, o luteranismo era uma consequência orgânica da mentalidade medieval. Enquanto o catolicismo foi da Renascença para o Barroco, e do Barroco para o Rococó, o mundo da Reforma continuou a aderir ao estilo gótico, da ordem antiga e da lei comum (common law). Por um longo tempo, a Igreja Reformada permaneceu sendo a maior força conservadora da Europa.

II

É impossível, claro, pensar em Calvino sem Lutero, apesar dos dois terem diversas diferenças em diversos pontos (mesmo com algumas dessas diferenças tendo sido avaliadas erroneamente). A patente noção falaciosa de Lutero como inaugurador do pensamento liberal-democrático foi transferida para Calvino. Ele tem sido representado como o pai das liberdades políticas e do direito de resistência aos governos tirânicos. Na verdade, as atitudes políticas de Calvino eram aristocráticas ou oligárquicas. Ele considerava o governo arbitrário como um castigo divinamente ordenado, un ire de Dieu4, que deveria ser suportado com humildade e paciência. Nisso ele concordava totalmente com Lutero. Foi somente em pouco menos de um século após sua morte, isto é, até Luís XIV ter revogado o Edito de Nantes em 1685, que a teoria calvinista do direito à resistência — fortemente inspirada pelos primeiros professores jesuítas — foi desenvolvida por Pierre Jurieu.

Quanto a predestinação, devemos nos lembrar que Lutero também acreditava nela, como demonstrado em sua dissertação De servo arbitrio, apesar de Melâncton, outro humanista e um dos primeiros ecumenistas, ter se certificado de que o posicionamento de Lutero neste assunto não fosse incorporado na Confissão de Augsburgo. O ponto de vista de Calvino sobre a predestinação não apagou completamente a antiga tradição cristã de livre arbítrio, e apesar de ter sido um fator importante na construção da mentalidade “protestante”5, nunca se tornou uma força fatal como Kismet no Islamismo6. O homem ocidental pode aceitar a ideia de pertencimento a um grupo de eleitos, mas sua natureza dinâmica o impede de enxergar a si mesmo como algo além de um mero fantoche manipulado por Deus. É importante notar que Karl Barth, fundador de uma ortodoxia neocalvinista, rejeitou a teoria de Calvino sobre a predestinação.

Ambos Lutero e Calvino eram defensores de Cristo. Suas doutrinas eram estritamente teocêntricas — mais que, de certa forma, algumas da Igreja Católica. Seus pontos de vista eram essencialmente monásticos e, no caso de Calvino, decididamente ascético. Ambos eram tipos severos, convictos de que, sem uma disciplina estrita, a humanidade está destinada a naufragar, por causa de sua natureza desgraçada e pecaminosa, que pende ao estrago. Condenavam esses elementos na tradição e temperamento católico, que eram antropomórficos, sensuais, artísticos, personalistas, intelectuais e racionais. A Contra-Reforma católica, de sua parte, era frequentemente inclinada a se posicionar diretamente contrária à posição dos reformadores.

III

No século XVIII, encontra-se no mundo occidental o fenômeno gêmeo do racionalismo e do Iluminismo, ambos derivados da cultura e civilização católica. O racionalismo, como descrito por J. Bochenski, é neto da Escolástica, e o Iluminismo é produto tardio do espírito da Renascença. Ambos enfatizam o poder e a glória do homem; ambos — pegando emprestado a frase de Romano Guardini — são expressões do menschliche Selbstbehauptung, a auto-afirmação humana. A consequência catastrófica desses dois eventos foi a Revolução Francesa. A mentalidade dessa revolução, como bem observou Hegel, finalmente triunfou na órbita reformada, ao invés da católica. A razão para este paradoxo é que, graças ao caráter que esta adquiriu na Renascença, o mundo católico havia sido “vacinado”, por assim dizer, contra a infecção de uma nova ideologia. A influência exercida pelo racionalismo e pelo Iluminismo teve poucos, até zero efeitos permanentes no mundo católico, mas com as igrejas da Reforma foi uma história diferente. Nelas, a influência foi profunda e divisiva; depois disso, essas igrejas se desenvolveram de um ou de outro jeito: ou seguindo a linha determinada pela confissão de fé de seus fundadores, ou dar uma meia volta radical deste caminho e ir pro total oposto, seguindo a rota do secularismo liberal para o relativismo. Desde então, quase toda igreja “protestante” teve dois ramos: o cristão ortodoxo — não necessariamente fundamentalista — e o secularizado relativista.

Graças à essa invasão do espírito secularista — e, até certo grau, da Renascença católica — no mundo pós-reforma, podemos perceber no século XIX uma crença crescente que nações “protestantes” são, de certo modo, iluminadas, progressistas, avançadas, intelectuais e individualistas, enquanto que nações católicas são ignorantes, atrasadas, pouco inventas, estéreis, medievais, e assim por diante. Tais crenças são causadas pela profunda confusão dos fatos, numa questão semântica. A noção de que os católicos vivem debaixo de uma autocracia eclesiástica, que os impedem de desfrutar os prazeres da vida, é tida pelos “protestantes” que não compartilham mais dos valores espirituais e culturais dos reformadores, em vez disso vivem debaixo da sombra do relativismo liberal. Na visão de um verdadeiro cristão da Reforma, o caráter católico se resume em “Rum, Romanismo e Rebelião”, ou, em termos mais gentis, algo como o joie de vivre pagão, o espírito da Renascença e inclinações anárquicas. Se duvida disso, compare as perspectivas sobre a fé católica de um dominie7 da Igreja Reformada Neerlandesa em Groninger e dos ministros da Marble Collegiate Church na Quinta Avenida, em Nova Iorque. Você irá perceber que são diametralmente opostos.

A pessoa responsável por essa mudança de percepção foi o outro “Jean” de Genebra, Jean Jacques Rousseau, o qual por um período de sua juventude havia aceito a religião católica. Sua visão sobre a natureza humana era o exato oposto que a de Calvino. Enquanto que Calvino, o filho adotivo de Genebra, defendia que o homem é uma criatura tão torpe que seus pecados podem ser limpos somente pelo Sangue do Cordeiro, Rousseau, nativo genebrino que viveu grande parte da sua vida no exterior, acreditava que o homem é, por natureza, inteiramente bom. Se o homem demonstra algum sinal de maldade, somente as circunstâncias externas são responsáveis: “O homem nasce livre, mas ele está acorrentado em todos os lugares.”

Tudo, portanto, depende da ordem correta. Rousseau é o coordenador filosófico de um racionalismo não-muito-racional e de um Iluminismo que, como agora podemos perceber, anunciava a vinda de uma era das trevas. Suas mensagens contraditórias consistiam de um apelo à bondade inata do homem, especialmente em seu estado natural de bom selvagem, à um conceito de liberdade que tem o puro caráter coletivista, e à uma ordem politica pouco definida que é inteiramente restritiva. Não é de admirar que seus livros foram queimados em Geneva, ou que durante a Revolução Francesa seus restos mortais foram transferidos para o Panteão. Rousseau foi quem antecipou a mensagem para Cristo do Grande Inquisidor, em “Irmãos Karamazov8

“O tempo virá, quando a humanidade, pela boca de seus filósofos e cientistas, proclamarão que não existe tal coisa como crime, quiçá até pecado; há somente pessoas famintas. Na bandeira que erguerão contra Ti estará escrito: “Alimente-os primeiro e depois os peça virtude!” e com isso eles destruirão a Tua catedral.”

As inúmeras contradições no pensamento de Rousseau meramente refletem as contradições de sua personalidade e das ideias que ele gerou, que ainda são efetivas hoje. Noções vagas de liberdade e escravidão colectiva, inerentes de seu conceito de volonté général, alternado com suas noções exageradas sobre a eficácia da “educação”. Não podemos esquecer que, com todas suas ideias totalitárias, Rousseau provavelmente não é cria do Iluminismo, como a figura central do movimento Romantismo, com sua veneração ambivalente pela sofisticação e pela simplicidade, sua adulação por philosophes, pastoras de ovelhas e plebeus, seus desejos por absolutismos combinado com um anarquismo latente, seu sentimentalismo acompanhado de sua tendência à brutalidade máxima. De fato, se considerarmos o antagonismo entre Classicismo e Romantismo, como brilhantemente formulado por Irving Babbitt, podemos dizer que Calvino era um classicista — o que, ao contrário de Lutero, ele certamente era — então Rousseau representa o Romantismo par excellence.

IV

O dilema do Homem Ocidental, dividido entre Calvino e Rousseau, é menos perceptível na Europa que nos Estados Unidos. No Velho Continente, tantas outras dolorosas alternativas foram oferecidas ーAdam Smith vs Karl Marx, Burke e de Maistre vs Sade e Robespierre, a Primeira Roma vs a Segunda e a Terceira ーque a única escolha real em debate, a tumba ocupada de Lênin vs a tumba vazia de Cristo, fica obscurecida. No Novo Mundo, entretanto, onde as linhas da história não são reescritas várias vezes até que se tornem ilegíveis, a transição de Calvino até Rousseau se destaca com folga. Se nós chamamos os políticos americanos do final do século XVIII de “Founding Fathers” (Pais Fundadores), então os “Pilgrims” (Peregrinos) e os Puritanos foram os avós, e Calvino o bisavô. Ao dizer isso, não é preciso excluir os Virginianos porque o Anglicanismo tem fundamentos essencialmente calvinistas ainda reconhecíveis nos 39 artigos de religião, e os Peregrinos, como os puritanos em geral, representam um tipo de Anglicanismo Re-reformado. Embora o elegante deísmo do século XVIII possa ter impregnado alguns círculos intelectuais, o espírito americano predominante antes e depois da Guerra de Independência era essencialmente calvinista tanto nos aspectos bons quanto nos ruins. Eles eram um povo trabalhador, frugal, franco e bastante nacionalista, conscientes e orgulhosos de seus padrões morais, que inclui a “ética de trabalho protestante”. Sendo uma nação com tais virtudes, eles despertaram a admiração do mundo e em sua própria autoestima estavam convencidos de que sua nação tinha uma missão messiânica de salvar o mundo através de uma novus ordo seclorum9.

Entre o final do século XVIII e o início do século XIX, a religião protagonizou um papel maior na América do que na Europa, não muito entre os intelectuais e líderes sociais, mas entre os cidadãos comuns. “Pluralismo” não era então uma palavra proibida como o é hoje, mas era um fato, e as divisões sectárias serviram muito mais para fortalecer o zelo religioso, do que enfraquecer. É importante lembrar que as Guerras Coloniais contra os franceses tinha um quê do caráter das Cruzadas contra a idolatria papista e do entusiasmo popular da Guerra de Independência foi ajudado em conjunto com a crença — por mais absurda que seja — de que Jorge III do Reino Unido havia secretamente se tornado católico e que o Ato de Quebec de 177410, garantindo tolerância religiosa aos franco-canadenses, o qual os colonos consideravam uma ameaça direta às suas liberdades.

V

É claro que tal propensão americana de afastar-se de Calvino para gravitar em torno de Rousseau não começou ontem. Alguns aspectos do pensamento de Jefferson são distintamente roussellianos e encontramos evidências ainda mais fortes em Thomas Paine, um paladino da revolução francesa. O culto ao deísmo é violentamente oposto às ideias calvinistas de Deus. A Maçonaria, um fator considerável na Revolução Americana, é decididamente deísta no temperamento, e sua concepção da natureza humana é muito mais “católica” do que “protestante”, ou seja, muito mais próxima da Renascença do que a noção medieval da condição do homem. Ainda assim, o afastar-se americano de Calvino nunca foi definitivo, nem o é até hoje. Sua influência continua a correr como um sombrio, subterrâneo fluxo através do subconsciente americano. A presença de Maistre Jehan, da teocracia de Genebra, pode ser sentida em toda importante literatura americana e, numa menor escala, em todas as outras formas de expressão artística deste país. Não obstante todo seu superficial otimismo, os americanos não podem livrar-se totalmente da noção de que o homem é um criatura miserável, totalmente aleijada pelo pecado original, e que só a graça de Deus pode salvá-lo. Por baixo de toda a atividade frenética, a busca incessante do prazer, uma certa melancolia permeia a vida americana e encontra expressão em uma música folk que é profundamente calvinista, expressando-se em sua própria maneira aquilo que Jacques Chardonne, um católico, chamou les terribles verites chrétiennes11 Sem dúvida, o calvinismo dá um enorme ímpeto para aqueles que acreditam pertencer à assembleia de salvos, de estar entre os eleitos predestinados – uma crença mantida coletivamente pelo povo americano. Mas a doutrina calvinista da eleição e reprovação pode também esmagar as almas mais frágeis, aqueles que incorrem em dificuldades por um complexo de inferioridade; daí a amarga e lacerante natureza da pobreza em todos os países onde a fé reformada e sua ética prevaleceram, onde o pobre e o pedinte são párias. Uma reação histórica tardia, no entanto, causou que um grande setor do pensamento americano se desviasse em uma direção oposta ao calvinismo. O temperamento prevalecente tornou-se de um otimismo flutuante que se fez sentir até no folclore nacional. Tal disposição estava em harmonia com a nova política, com sua tendência para a democracia igualitária que os fundadores em 1787 perceberam e rejeitaram, um fato que muitas vezes é intencionalmente ignorado. As distinções populares traçadas entre democracias Jeffersonianas e Jacksonianas12 não devem obscurecer o fato que Washington, Hamilton, Adams, Gouverneur, Morris e Fisher Ames eram tão hostis para com a democracia—e para a Revolução Francesa—como, mais tarde, os obstinados sequazes da Santa Aliança o foram, embora por razões um tanto diferentes. Mas por toda parte a maior parte do décimo nono e todo o vigésimo século, podemos observar a gradual democratização da Constituição americana, contínua com a democratização psicológica da sociedade americana13, na qual riqueza e aprendizado outrora14 desempenharam um papel importante. A noção rousselliana de que o homem por natureza é inteligente e bom, que ele tem conhecimento e responsabilidade política começou, pouco a pouco, a permear a visão americana. Os nativos começaram a se considerar mestres de uma Ilha dos Bem-aventurados, onde essas “verdades evidentes” foram reconhecidas e compreendidas.

A imagem da Europa como um continente cujas ruelas estavam repletas de “lixo miserável”, escravizado e oprimido por reis, aristocratas e sacerdotes tornou-se uma adição ao folclore americano, embora nunca fosse aceita por espíritos mais resolutos como Herman Melville, Irving S. Babbitt e H. L. Mencken.15

Em meados do século vinte, a deificação do Homem Comum, anunciada por seu profeta Henry Wallace, estava completa. As antigas disciplinas morais foram substituídas por um novo evangelho de permissividade. O Soli Deo Gloria de Calvino

foi substituído pela adoração de aglomerados humanos, raças inteiras, nações inteiras, classes inteiras, ou, pelo contrário, a adoração do indivíduo alienado, do não-herói. Se lá há algo de errado com qualquer um desses, seja coletiva ou individualmente a culpa não reside em si, mas no exterior, nas circunstâncias – na opressão econômica, na educação deficiente, no trauma devido ao status de minoria, na exclusão de clubes, fraternidades e irmandades, no comércio sexual inadequado, nos tabus socialmente impostos, nos pais autoritários, nos bairros degradados, em inadequadas condições sanitárias, na falta de oportunidades recreativas, nas discriminações étnicas, e assim por diante, ad infinitum.

Em que pese todo o seu predestinarianismo, o calvinismo incentiva um estilo de vida ascético. Embora Deus possa ter decidido desde o começo dos tempos quem seria salvo e quem não seria, a humanidade nunca foi absolvida do dever de pelo menos lutar pela felicidade eterna através da oração, labuta, da correção de apetites, pela severidade para consigo mesmo e na caridade para com os outros, pela obediência, disciplina e a leitura contínua da Sagrada Escritura, pela recepção dos dois sacramentos e, no geral, pela santidade pessoal. Aos olhos de Calvino, o homem, embora inescapavelmente nascido no pecado, no entanto, é uma criatura responsável. Aos olhos de Rousseau, o homem é ao mesmo tempo bom e irresponsável – uma manufatura das circunstâncias.

Embora a natureza possa permitir desigualdades físicas e intelectuais, um homem é essencialmente tão bom quanto outro, uma noção profundamente enraizada no folclore americano de hoje. Uma teologia cristã rebelde endossou tal ideia ao afirmar que “todos nós somos igual aos olhos de Deus”. Mas as Escrituras não falam em lugar nenhum de igualdade; são-nos distribuídas várias quantidades diferentes de Graça. Cristo não amou todos os seus discípulos igualmente, e se Judas fosse admitido como igual de São João, o cristianismo teria que fechar as portas. Não há igualdade nem no Céu, nem no Purgatório, mas pode muito bem haver igualdade no Inferno, onde esta pertence.16

É triste refletir que a transferência gradual do imaginário cristão do conceito calvinista para o rousselliano sobre a natureza humana foi fomentada por várias denominações, especialmente em seus ramos liberais, e que tem sido acompanhada por um secularismo contrabandeado em suas teologias. Ao invés de liderar seus rebanhos, o clero começou a seguir modismos seculares, ignorando o aviso de Chesterton que a Igreja é a única coisa que nos salva da escravidão degradante de nos tornarmos filhos de nossos tempos. A este respeito, a Igreja Católica também falhou, na América e em outros lugares, com seus seguidores. No seu zelo contra reformista, esta correu para longe do calvinismo, apenas para ter seus apologistas de braços dados com Jean Jacques.

O constante e lacrimoso palavrório sobre “dignidade do homem” é deprimente. Claro que tal existe, mas pode ser facilmente perdida. Dignidade é algo que deve ser recuperado todos os dias; não deve ser tomada17, nem deve ser concedida automaticamente a cada zé ruela, ou a cada canalha grande ou pequeno.

Em alguns círculos teológicos católicos modernos, ocorreu uma reavaliação respeitosa da personalidade e ensinamentos de Martinho Lutero. Uma reavaliação semelhante de João Calvino seria uma lição mais árdua, tanto doutrinária quanto psicologicamente, já que, apesar de colérico, Lutero era de enorme coração, já Calvino era duro, frio e equilibrado. Ainda assim, foi Calvino, e não Lutero, que teve um impacto duradouro e mudou o mundo; e entre Calvino, ao fim das contas, um teólogo cristão genial – e Rousseau, o philosophe pagão, não deve haver dúvida sobre quem merece o apreço dos católicos.

VI

Mas foram nas esferas sociais e políticas que a mudança de lealdade do Reformador para o filósofo romancista causou os maiores estragos. Na conduta de ambos assuntos, internos e externos, a maldade real ou potencial da natureza humana é deliberadamente esquecida. Como ninguém e parte alguma é considerado realmente culpado de algo, condições sociais devem ser constantemente criticadas e corrigidas; assim um experimento nobre segue após o fracasso de outro, um bom exemplo sendo o experimentos socialistas na Rússia Soviética.

O fato dos seres humanos poderem ser preguiçosos, enganadores, avarentos, invejosos, rancorosos e simplesmente estúpidos, aparentemente não tem permissão para adentrar na mente neo-rousselliana. O pecado original e suas manifestações estão no coração da teologia calvinista. A doutrina católica dominante é menos severa: “O Homem está privado de seus dons extraordinários e ferido em sua natureza.” Nós fomos deixados com uma vontade enferma, um entendimento escurecido, e uma forte inclinação para o mal. Porém com o acréscimo de graça procurada e obtida, essa inclinação pode ser resistida, assim permitindo a possibilidade da salvação por livre escolha como também por eleição divina. Mas atualmente tendem a rejeitar totalmente desta doutrina. No lugar de uma humanidade corrupta por natureza, temos a imagem de um homem bom por natureza, às vezes fraco talvez, mas aspirando sempre ao bem, a verdade e o belo. Já que os fatos evidentes tantas vezes contradisseram esta teoria agradável, era necessário democratizá-la.

As maiorias são sempre boas, sempre certas, se não fosse pela existência de minorias inimigas aristocratas, capitalistas, judeus, padres, generais, banqueiros, fabricantes, certos políticos ou certos intelectuais, conforme a ocasião exigir. A maioria, representando a média, consiste, como diz o idioma popular, dos mocinhos, as minorias, representando uns poucos excepcionais, dos caras maus.18 A doutrina do volonté génerale não deixa lacunas para minorias e nenhuma ideologia surgida da revolução francesa — Democracia jacobina, socialismo, comunismo, fascismo, nacional-socialismo — sendo em teoria intolerante a esses. A noção de uma maioria infalível reinado por um tipo de direito divino tornou-se parte do folclore político e social americano; por causa das suspeitas de conspiração de poucos.

Os julgamentos de Nuremberg, por exemplo, foram baseados na acusação de uma conspiração dos nazistas, embora todos saibam, ou devessem saber, que os nazistas eram o maior partido da Alemanha, votado por gente boa em eleições livres, e então vieram ao poder pelo processo democrático. Da mesma forma, os comunistas italianos hoje esperam ganhar o poder pelo processo democrático, sem conspiração, sem revolução. A atitude da maioria dos americanos e de muitos europeus em relação às condições na América Latina oferecem outros exemplos de suas perspectivas políticas distorcidas. Para a mente liberal, parece óbvio que a estrutura social na América Latina deve estar totalmente errada, já que as massas virtuosas de lá estão frustradas em seus esforços para encontrar um trabalho que lhes garanta melhores condições de vida e, portanto, estão se voltando para o comunismo. Assim como os explorados, as massas italianas o fizeram.

A verdade é que praticamente todos os líderes da esquerda-radical na América Latina são filhos de oligarcas ou burgueses; as massas até agora permanecem impassíveis por eles. As massas também não mostram muito entusiasmo pelo modo de vida burguês ou pelas virtudes burguesas de trabalho duro e economia. Nossos contemporâneos tendem a se apegar à noção não-histórica de que a história é estritamente racional, que ação e reação seguem de maneira lógica e matemática19. A superstição subjacente a essa crença é novamente rousseliana, embora também derive em parte de uma certa Näiveté católico que pôs muita ênfase no conceito escolásticos e aristotélico do homem como animal racional; A noção de um “comunismo do estômago” se encaixa facilmente no conceito. O mesmo acontece com a interpretação da revolução bolchevique como uma reação à opressão czarista, como uma rebelião dos camponeses sem terra contra os proprietários feudais. Ainda assim, exceto por Kalinin e Dybenko, nenhum dos líderes bolcheviques de 1917-20 era proletário. Os líderes eram nobres como Lenin e sua esposa, como Chicherin, Dzerzhinski, Lunacharski e Alexandra Kollontay, ou burgueses judeus como Trotsky, ou ex-seminaristas como Stalin e Mikoyan. Além disso, não foram os bolcheviques que derrubaram a monarquia russa; isso foi em grande parte obra de outros elementos democráticos liberais. Além disso, em 1917, apenas 23% das terras aráveis da Rússia – em comparação com 55% na Grã-Bretanha – pertenciam a grandes proprietários.

VII

A crença de que o homem é bom e se torna mau apenas em desespero é totalmente absurdo. O ditado popular Português, “Castiga o bom, melhorará, castiga mal, piorará” – Castigue uma pessoa boa e ela melhora, castigue uma má e ela piorará – é muito mais realista; o sofrimento separa o trigo do joio. Deve-se aceitar o fato de que o homem é um pecador, e que ele é fraco e totalmente inclinado para o mau. Não é necessário um conhecimento científico ou filosófico para reconhecer essa triste verdade: todos nós precisamos olhar para nossas próprias vidas e nossas próprias almas para percebermos que temos pelo menos potencial para um grande mal. Isso é algo que o neo-rousseauniano, seja um democrata, um socialista, um comunista ou um anarquista, deseja ignorar. Ele prefere acreditar na inesgotável capacidade do homem para o bem. O rousseauniano liberal espera que ele alcance isso através de uma permissividade ilimitada, já o rousseauniano iliberal teria de encontrá-lo em “sistemas” e utopias. Mas, tanto a dissolução total quanto a regulamentação total significam morte.

A história política, social e econômica, e até mesmo a história das religiões, nos mostram claramente que mesmo existindo santidade e altruísmo no mundo, a predominância da inveja, da malícia, do ódio, da crueldade e da avareza nunca poderá ser simplesmente ignorada20. Nem a própria história dá qualquer garantia de que o bem irá triunfar algum dia. Bons governos, assim como também os ruins foram destruídos em revoluções, bons governantes e políticos estão sendo assassinados, canalhas e monstros têm prosperado, más causas têm prevalecido. Comparando o conceito de mundo de Lutero com des Teufels Wirtshaus, o Devil’s Inn (pousada do Diabo) e o conceito da ilimitada perfeição do homem na terra de Rousseau, evidencia onde tanto o menor erro quanto a maior arrogância mentem.

Hoje vivemos em uma era de triunfo rousseauniano. O bolchevismo é apenas mais uma evidência de sua vitória; Outra é o movimento hippie do intelectual Lumpemproletariado. Rousseau é o avô dos campos de concentrações e também daqueles bordéis armados que continuamos a chamar de universidades. Por um lado, temos conosco a Antiga Esquerda, um produto acabado da “l’ éducation sentimentale” (do francês, “Educação sentimental”), com sua inclinação voltada para engenharia social e sua tendência para identificar seus próprios planos e políticas com a volonté générale (do francês, vontade geral); do outro, temos a Nova Esquerda, o qual assumiu o slogan “Retournons à la nature!” (do francês, “De volta para a natureza!”), exemplificado nas ralé de desprezíveis selvagens sujos, descuidados, depravados e descontrolados, os quais olham para o Terceiro Mundo de subdesenvolvimento como inspiração. Seus heróis são Chairman Mao com seu Pequeno Livro Vermelho, Ché Guevara, Ho Chi Minh, Holden Roberto, os criminosos de Harlem e a posse de armas para líderes religiosos. A Nova Esquerda continuará seu jogo até o seu tempo findar, e continuará ou quando a dissolução Rousseauniana nos envolver-nos todos, ou – como preferimos esperar – quando fora de recessos mais profundos das memórias subconscientes da América dos outros Genevois sobe para uma nova vida. Isso será um novo dia para Maistre Jehan, um ótimo dia, e um bem amargo para o resto de nós.

Notas

1O artigo “The Western Dilemma: Calvin or Rousseau?” foi publicado pelo periódico Modern Age, na edição do inverno de 1971.

2Os três teólogos mais excepcionais e conhecidos mundialmente, que viveram na Suíça católica, eram Hans Urs von Balthasar, Otto Karrer e o controverso Hans Küng.

3Referência ao sistema de seguro social dos Estados Unidos, criado em 1966, gerido e bancado pelo governo federal.

4Cf. Calvino, Institutas, Volume IV, Capítulo XX, 25º Tópico

5O termo está entre aspas por ser opróbrio, inventado no século XVI pelos contrarreformadores, que começou a ser usado generalizadamente somente um século depois. Não tem posição oficial na Europa continental. A explicação de que “protestante” vem de pro-tes-tare, i.e. testemunhar, é uma prestidigitação do século XIX.

6“Kismet”, do turco, “destino, uma causalidade inevitável”, interpretado como a vontade de Alá.

7Termo utilizado para designar pastores e/ou ministros da Igreja Reformada Neerlandesa (ou Holandesa).

8Famosa obra de Fiódor Dostoiévski, publicada em 1880.

9Frase em latim que significa “Nova Ordem dos Séculos”, presente no selo da moeda americana.

10Ato parlamentar britânico, promulgado em 1774, que proibia os colonos acesso às terras de Quebec, a fim de manter a lealdade dos franco-canadenses à coroa britânica, frente aos acontecimentos da Revolução Americana

11Há uma lápide na Stadtpfarrkirche em Klagenfurt com a inscrição NASCI, PATI. MORI. Para ver a mudança da seriedade calvinista (e devoção cristã) para o hedonismo moderno (e ilusionismo), deve-se comparar os antigos cemitérios da Nova Inglaterra com os modernos “parques memoriais”.

12Jackson foi, sem dúvida, um democrata; mas a posição de Jefferson não é de forma alguma clara. Em todas as suas obras reunidas (edição de Washington), ele apenas uma vez se pronunciou (indiretamente) a favor da democracia quando, em uma carta a Dupont de Nemours, chamou de democrático o “temperamento” do povo americano. Ainda assim, em uma carta a Mann Page (30 de agosto de 1795), ele falou sobre as “multidões de porcos”. (The Writings of Thomas Jefferson, Ed. P. L. Ford (New York: Putnam) 1896, Vol. 7, pág. 24. Sua visão era essencialmente elitária e propunha o estabelecimento de haréns para que homens superiores (como ele) pudessem ter uma grande descendência. Cf. L. J. Cappon. The Adam-Jejerson Letters (Chapel Hill: U. of N. Carolina Press, 1959), Vol, 2, p. 387.

13Sobre a América no início do século XIX, cf. Francis J. Grund, no Aristocracy in America (Nova York: Harper Torchbook, 19.591)

14Richard Hofstadter, em Anti-intellectualism in American Life (Londres: Jonathan Cape, 19641).

15Hoje deveria ser evidente para todos que a supressão por “líderes iluminados” e não coroados como o falecido AdoIf HiIter ou Joseph Stalin, Fidel Castro ou Mao Tse-Tung, Ernest Gerii ou Antonin Novotny era pior do que isso de reis em tempos idos.

16A igualdade invocada por nossos teólogos é geralmente igualdade adverbial. Igualmente, todos temos almas (mas, é claro, não almas iguais), somos igualmente filhos de Deus (mas não iguais filhos de Deus). Se tivermos contas bancárias iguais, isso não significa de forma alguma que tenhamos as mesmas contas bancárias.

17Pode-se, no entanto, argumentar que em nenhum sistema político a dignidade do homem é tão desafiada do que precisamente naqueles originados da Revolução Francesa, ou seja, aqueles inspirados por Rousseau. ‘Democracia’ pertence ao mesmo grupo. Aqui, o homem é uma cifra melosa, uma unidade aritmética, não uma unidade algébrica. Há muito tempo, Aristóteles observou que os homens nas democracias são contados por números e não de acordo com o valor.

18Locke estava convencido de que “certo é o que a maioria deseja – o que a maioria deseja é certo”. Cf. Willmoore Kendall, “John Locke and the Doctrine of Majority Rule”, em Illinois Studies in the Social Sciences, Vol. 26, No. 2 (1941), pág. 132. Essa noção é muito rousseliana. Certamente não teria sido compartilhado por Voltaire, que pertencia ao Iluminismo, mas não ao Romantismo. Seu desprezo por Rousseau foi impressionante. Cf. sua troca de cartas com d’Alembert em Oeuvres complètes de Voltaire (Paris: SociBt6 LittBraire, 1785), Vd. 68.

19As piores convulsões da América Latina estão ocorrendo naquele antigo Estado-modelo, o latino-americano Suíça-Uruguai. Este é um estado de bem-estar social estritamente desregulado com uma estrutura social muito equilibrada. Não existem graves problemas sociais ou raciais. Os líderes dos terroristas Tupamaros, no entanto, são filhos (e filhas) de famílias abastadas ou mesmo ricas. Os Tupamaros são chamados em homenagem a Tupac Amaru, um rebelde indiano-peruano do século XVIII; mas não há índios no Uruguai.

20A inveja, de acordo com o falecido conde Bertrand Russell, é o motor da democracia. Cf. seu The Conquest of Happiness (Nova York: Horace Liveright, 19301, pp. 83-84)

Organização: Gabriel Galdino

Tradução e revisão: Gabriel Ferreira, Gustavo Machado,

Marina Ílane, Pedro Marques e Rafael Purim

Disponiblizado por Wittenberg’s

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