Extrato do livro “O Calvinismo Explicado: Teontologia, Providência e Decretos – Vol 1” 3ª Edição. Disponível em: https://loja.calvinismoexplicado.com.br/o-calvinismo-explicado
O texto abaixo não está disponível na 1ª e 2ª Edição.
A crença na vontade antecedente e consequente pertence a tomistas, molinistas, arminianos e alguns calvinistas, embora os citados possam se diferenciar quanto ao uso dos termos. Os calvinistas amyraldianos fizeram uso desse conceito, enquanto os mais ortodoxos recusam os termos quando usados para defender o universalismo hipotético em 1 Tm 2.4:o qual deseja que todas as pessoas sejam salvas e cheguem ao pleno conhecimento da verdade. Ele entra em nossa disputa quando se propõe o seu uso para responder os seguintes problemas:
– Sendo Deus absolutamente simples, sua vontade não pode mudar, logo, não pode ter duas vontades contrárias. Sendo Deus onipotente, pode fazer tudo o que é logicamente possível, logo, quando o texto de 1 Tm 2.4 afirma que Deus quer salvar todas as pessoas, as perguntas que vem a seguir são: porque então todas as pessoas não são salvas, já que Deus é onipotente? Deus condena com justiça, logo condena porque quer condenar, porém, ele não pode querer condenar e salvar ao mesmo tempo, então como conciliar essas duas vontades em Deus, a de salvar e condenar visto que Deus não muda de vontade?
Esse não é o problema fácil de resolver, por isso, diversas interpretações foram dadas a esse texto na tentativa de oferecer uma resposta que não colocasse em Deus uma mudança de vontade. Uma delas foi oferecida por João Damasceno (675 – 749 d. C), que consistia em distinguir a vontade de Deus em antecedente e consequente. Em uma vontade antecedente, Deus quer salvar todos os homens, pois nesse caso, Deus consideraria apenas a criatura em si mesma e não os atos dessa criatura, porém, quando Deus considerasse os atos dessa criatura, então com uma vontade consequente Deus agora quer salvar somente os que creem e quer condenar os impenitentes. João Damasceno foi o criador dos termos e também o desenvolvedor do conceito, mas antes dele, algo pode ser encontrado em São João Crisóstomo (347-407 d. C.) em suas Homilias aos Efésios, ao comentar o versículo 5 do capítulo 1, porém com outros termos, quando diz:
Isto é, porque o quis de fato. É este, diria, seu desejo. Sempre eudokia, a vontade principal e precedente. De fato, existe outra espécie de vontade, por exemplo, a primeira é que não pereçam os pecadores; a segunda que pereçam os que se tornaram malvados. Não os castiga a necessidade, mas a vontade. Pode-se verificar isso no dito de Paulo: “Quisera que todos os homens fossem como sou” e ainda: “Desejo, pois, que as jovens viúvas se casem, criem filhos” (1Cor 7,7; 1Tm 5,14). Denomina eudokia, portanto, a vontade primordial, a intensa unida ao desejo, a pertinácia. Não recusarei empregar o termo mais comum, a fim de que o assunto se torne claro para os mais simples. Assim, também nós explicamos a intensidade da vontade: Em nossa opinião. Significa: Deseja assaz, muito anseia por nossa salvação.1
Embora a distinção de São João Crisóstomo, no ver desse autor, esteja mais adequada à distinção entre vontade de signo e vontade de beneplácito.
João Damasceno então usa o conceito e introduz os termos: vontade antecedente e vontade consequente, de forma mais apropriada para o nosso debate, quando diz:
Também é preciso ter em mente que o desejo original de Deus era que todos fossem salvos e viessem para o Seu Reino. Pois não foi para o castigo que nos formou, mas para participar na sua bondade, visto que é um bom Deus. Mas visto que Ele é um Deus justo, Sua vontade é que os pecadores sofram punição. A primeira, então, é chamada de vontade e prazer antecedentes de Deus e brota de Si mesmo, enquanto a segunda é chamada de vontade e permissão consequentes de Deus e tem sua origem em nós. E o último é duplo; uma parte tratando de questões de orientação e capacitação, e tendo em vista nossa salvação, e a outra sendo irremediável levando à nossa punição total, como dissemos acima. E este é o caso de ações que não ficam em nossas mãos. (DAMASCENO,J. De fide orthodoxa. Disponível em: (http://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/0675-0749,_Ioannes_Damascenus,_De_Fide_Orthodoxa,_EN.pdf). Acesso 28 NOV. 2021. p 118.)
Gregório de Rimini examinou a distinção entre a vontade antecedente e consequente de Deus conforme encontrada em Tomás de Aquino, Giles de Roma, Duns Scotus e Guilherme de Ockham. Ele observou que em todos os casos as respectivas definições de vontade antecedente e consequente eram diferentes da de João Damasceno, que foi o criador dos termos e o posterior e mais conhecido desenvolvedor do conceito, assim como eram diferentes umas das outras. Acrescento que as posições de Armínio e Molina também tem as suas peculiaridades, além disso, os tomistas disputam entre si sobre qual é o verdadeiro entendimento de Tomás de Aquino a respeito dessa tese, de modo que podemos falar de, pelo menos, 9 (nove) formas diferentes de apresentar esse conceito, cada um de seus proponentes afirmando que a sua abordagem é a mais verdadeira. Sem dúvida esse é o primeiro ponto de fragilidade, já que seus defensores sequer conseguem chegar a uma definição exata do que essa tese é. Por isso, é de suma importância que o estudante reformado ao se deparar com esses termos, se informe sobre qual é o conceito que está sendo defendido naquele momento. Algumas das refutações apresentadas aqui não servem para todos os proponentes, porém entregaremos ao leitor um acervo de informações que abarcará a maior parte dos argumentos apresentados pelos opositores diversos.
Não se pode falar em vontade antecedente e vontade consequente, sem antes falar da ordem lógica dos decretos. Existe uma ordem lógica, não cronológica, dos decretos divinos que refletem a intenção de Deus e posteriormente a execução ou não dessa primeira vontade. Essa ordem lógica é estabelecida na eternidade. Visto que na eternidade não há tempo, então não se pode ter antes e depois, logo, embora todos estejam em um mesmo ato, logicamente podem se distinguir em uma ordem, assim como são os números, que existem todos em um só ato, mas logicamente obedece uma ordem, pois o numeral 1 vem antes do numeral 2, que é antes do numeral 3 e assim sucessivamente. Todos estamos de acordo que deve-se existir uma ordem lógica, e uma vontade antecedente com relação aos fins da vontade de Deus, e uma vontade consequente na providência dos meios para alcançá-la.
No calvinismo, se definirmos que a vontade antecedente é a intenção de Deus, e a vontade consequente é a providência dos meios para alcançar tal intenção, então não contenderemos, já que a vontade antecedente e consequente fazem parte da vontade de beneplácito de Deus. Pedro Lombardo examinando o texto de 1 Timóteo 2:4 em seu Libri quatuor Sententiarum e Collectanea in epistolas sancti Pauli discute sobre a questão de se a vontade de Deus pode ser anulada. Pedro Lombardo reconheceu que a palavra para vontade (voluntas)e seus cognatos tinham uma variedade de significados nas Escrituras quando atribuídos a Deus. Essas diferentes representações, acreditava ele, deram origem a uma distinção básica na vontade de Deus que foi a voluntas beneplaciti (‘vontade de beneplácito’) e a voluntas signi (‘vontade de signo’, ‘vontade significada’ ou vontade de sinal). Lombardo parece ter sido influenciado por Hugo de São Victor. A ‘vontade de beneplácito’ é o significado fundamental das voluntas Dei. É o propósito ou plano estabelecido por Deus para o mundo criado que não pode ser mudado. Pedro Lombardo baseia-se nos textos de Salmos 113:11 da Vulgata (Salmo 115:3), Tudo o que ele deseja, o Senhor faz e Romanos 9:19, quem resiste à sua vontade [de Deus]? Lombardo fundamenta a ‘vontade beneplácito’ em sua doutrina da essência e simplicidade de Deus, ou seja, é aquela vontade que se identifica totalmente com Deus, portanto, não pode ser resistida nem mudada.
Pedro Lombardo também observa que a palavra voluntas nas Escrituras tem cinco outros significados: preceito, proibição, conselho, permissão e operação’. Todas elas são chamadas de ‘vontade de Deus’, mas são somente signos, sinais. O Mestre das Sentenças argumenta que, assim como os sinais da raiva ou do amor de Deus às vezes são simplesmente chamados de raiva ou amor, os sinais da vontade de Deus às vezes são chamados de sua vontade, ou seja por meio de algum sinal (por exemplo, por meio de um preceito ou promessa), essa vontade se nos faz conhecida e indica algum efeito fora de Deus como o sinal de sua vontade. Portanto, os cinco significados da vontade expressa de Deus não são literalmente a vontade de Deus e não tem o mesmo sentido da vontade de beneplácito. Pedro Lombardo mostra como a distinção entre as voluntas beneplaciti e signi através da história de Abraão e Isaac. A ordem de Deus de sacrificar Isaac é um preceito (the voluntas signi), mas, em última análise, a vontade de Deus era poupar Isaac (voluntas beneplaciti).
Todos os doutores medievais da via antiqua defenderam que a distinção entre a vontade antecedente e a consequente de Deus era uma distinção adicional na vontade de beneplácito, seguindo Agostinho de que 1 Tm 2.4 não era uma referência a vontade de signo, mas à vontade de beneplácito. Por isso, os calvinistas entendem que se existir uma vontade antecedente, ela deve corresponder a um plano divino imutável, pois pertence ao que Pedro Lombardo defendeu como vontade de beneplácito, porém se se defende que a vontade antecedente não se cumpre ou que depende da cooperação humana para se cumprir, como defendeu Alberto Magno (1196-1280), então não só rejeitamos, como consideramos uma corrupção do conceito de vontade de beneplácito. Assim, se Deus queria como fim a salvação dos eleitos (vontade antecedente), Ele então decreta os meios para que isso se execute e por isso, com uma vontade consequente, decreta uma graça irresistível sobre os eleitos, assim infalivelmente se alcança o fim. No calvinismo, A Vontade de Deus não é nada mais do que o próprio Deus disposto: consequentemente, é onipotente e inatingível. Por isso, Agostinho e os escolásticos a denominaram “voluntas omnipotentissinia”; porque, o que quer que Deus queira, não pode deixar de ser efetuado.1
Por outro lado, a distinção entre vontade antecedente e vontade consequente no tomismo, molinismo e arminianismo não é assim, para os tais a vontade antecedente nem sempre se cumpre, e, na nossa disputa em particular, quando a vontade antecedente corresponde à vontade salvífica universal, é apropriado dizer que a vontade antecedente de Deus nunca se cumpre, e uma vontade divina que não se cumpre é estranha a um Deus onipotente, por isso deve ser rejeitada. Dada as devidas distinções entre um autor e outro, nessas visões Deus quer de fato algo na sua vontade antecedente, mas os meios que Ele providencia não alcançam tal intenção. Na concepção das linhas teológicas citadas, Deus quer a salvação de todos os homens por sua vontade antecedente, mas em sua vontade consequente, só quer salvar somente aqueles que creram. Primeiramente analisemos os argumentos de Jacó Armínio e posteriormente o pensamento de Tomás de Aquino:
Pode ser, então, considerada antecedente a vontade pela qual Deus quer alguma coisa com relação à criatura (em nossa discussão, uma criatura racional), anterior a qualquer ato da criatura ou a algum ato particular dela. Assim, Ele desejou que todos os homens, e cada um deles, fossem salvos. A vontade consequente de Deus é aquela pela qual Ele deseja alguma coisa com referência a uma criatura racional, depois de algum ato ou muitos atos da criatura. Assim, Ele deseja que aqueles que creem e perseveram na fé sejam salvos, mas que aqueles que são incrédulos e impenitentes permaneçam sob condenação.2
Jacó Armínio continua explicando sua ordem de decretos. Deus permite a queda e temos a seguinte ordem: O primeiro decreto integral de Deus a respeito da salvação do homem pecador é aquele no qual Ele decreta a indicação de seu Filho, Jesus Cristo, para Mediador, Redentor, Salvador, Sacerdote e Rei que deve destruir o pecado pela sua própria morte, e que deve, pela sua obediência, obter a salvação que se perdeu, devendo comunicá-la pela sua própria virtude. O segundo decreto preciso e absoluto de Deus é aquele em que Ele decretou receber aqueles que se arrependerem e crerem, e, em Cristo, por causa dEle e por meio dEle, para efetivar a salvação de tais penitentes e crentes que perseverarem até o fim, mas deixar em pecado, e sob a ira, todas as pessoas impenitentes e incrédulas, condenando-as como alheios a Cristo. O terceiro decreto divino é aquele pelo qual Deus administra, de formas suficientes e eficazes, os meios que eram necessários para o arrependimento e a fé; e tal administração é instituída, (1.) de acordo com a Sabedoria Divina, por meio da qual Deus sabe o que é apropriado e torna-se tanto a sua misericórdia e a sua severidade, e (2.) de acordo com a Justiça Divina, por meio da qual Ele se preparou para adotar tudo aquilo que a sua sabedoria possa prescrever, colocando-o em prática. A estes sucede o quarto decreto, pelo qual Deus decretou salvar e condenar certas pessoas em particular. Este decreto tem o seu embasamento na presciência de Deus, pela qual Ele sabe, desde toda a eternidade, que tais indivíduos, por meio de sua graça preventiva, creriam, e por sua graça subsequente perseverariam, de acordo com a administração previamente descrita dos meios que são adequados e apropriados para a conversão e a fé; e, do mesmo modo, pela sua presciência, Ele conhecia aqueles que não creriam, nem perseverariam3.
Temos vários problemas. Primeiro trataremos da vontade antecedente e consequente, depois da ordem lógica dos decretos. O primeiro problema: quando Armínio fala com relação à vontade antecedente: anterior a qualquer ato da criatura ou a algum ato particular dela, parece que na vontade antecedente o homem ainda não foi considerado caído, pois, segundo o próprio Armínio, a vontade antecedente é, ou seja, é uma salvação que não pressupõe queda, já que não pressupõe os atos da criatura. Mas como que Deus pode desejar salvar alguém que não está perdido ainda? Falta então o objeto que levaria Deus a desejar a salvação do homem, logo, o desejo de Deus de salvar todos os homens é, na verdade, desejar o indesejável. Além disso, o texto considerado para essa interpretação é o texto de 1 Tm 2.4, que fala claramente que Deus quer a salvação de pecadores, ou seja, não pode se referir a uma vontade antecedente onde o pecado ainda não é considerado.
A segunda possibilidade, já que não está tão claro no texto de Armínio, embora me pareça ser mais coerente com seu pensamento, é que tal vontade antecedente está situada logicamente entre a queda e a emissão universal da graça preveniente, e que se considera os atos dos homens somente no tocante ao impedimento ou não impedimento que eles fazem da graça, e só assim surgindo a vontade consequente. Se assim for, a disputa sobre a pergunta: “salvar de que?” está respondida, pois Deus tem a vontade salvífica universal de salvar a todos os homens da perdição advinda da queda. Porém, aqui permanece um problema e surgem outros problemas. O problema que permanece é o de Deus ter uma vontade real de salvar a todos, sem exceção, (visto que há a eleição do Filho e também a emissão de graças falíveis, algo que não é feito sem propósito) e não realizá-la mesmo sendo onipotente, providenciando meios que Ele sabe que não alcançará um fim. Isso é desconectar o plano do decreto, o que é absurdo para Deus. Como pode um Deus onipotente ter um plano e não concretizá-lo? Quem quer o fim, quer também os meios, e como se explica Deus querer um fim com uma vontade antecedente e não querer os meios que leve todos os homens a esse fim?
O segundo problema, este maior que o primeiro, é que tais vontades são trabalhadas em uma perspectiva dupla: na antecedente Deus quer a salvação de todos os homens porque apesar de considerá-los caídos, não considerou seus atos após a queda, e sendo criaturas de Deus, deve-se supor que um Deus bom queira o bem de todas as criaturas, nesse caso dos homens, portanto, que queira salvar a todos. Esse pressuposto é ruim, se se seguisse da bondade divina uma vontade salvífica universal, o mesmo deveria ser para com os anjos, algo que não aconteceu, logo não se segue da bondade divina uma vontade de salvar a todos e cada um. Adiciona-se ainda que se 1 Tm 2.4 deve ser entendido que Deus quer salvar a todos na condição de que creiam, deve-se também supor o seu contrário, que a vontade de Deus é que todos sejam condenados na condição de que não creiam. Tal vontade nunca aparece na Escritura, porém, se é apropriado ensinar que Deus quer salvar a todos usando esse texto nesses termos, porque não é apropriado ensinar que Deus quer condenar a todos?
A segunda objeção, adjunta ao segundo problema, é que ao se deparar com o texto de 1 Tm 2.4, que diz: o qual deseja que todas as pessoas sejam salvas e cheguem ao pleno conhecimento da verdade, na perspectiva de Armínio, devemos entender que Deus quer a salvação de todos os homens caídos enquanto não consideramos seus atos, mas na medida em que Deus considera quem vai crer e quem não vai crer, não quer mais salvar todos os homens, mas agora quer condenar os impenitentes e salvar os que creram, ou seja, Deus tem uma vontade antecedente, e Sua vontade é rescindida ao prever quem o rejeitaria e quem o aceitaria, e só assim Ele emite, através de sua vontade consequente, o decreto de eleição e reprovação. Mas esse posicionamento é muito dificultoso, pois ao defender que a vontade de Deus é rescindida pelo que a criatura faz, isso impõe mutabilidade e potência passiva em Deus, tornando Deus causado, pois pressupõe que Deus não teria essa informação, e somente depois a teve. Basta considerar que as causas segundas podem ser livres, necessárias ou contingentes. Os homens são causas livres que geram ações livres e eventos contingentes. Sendo a causa segunda considerada em si mesma livre ou contingente como que um ato futuro e certo pode ser previsto baseado nelas mesmas e não em uma causa externa? Assim, somente um decreto pode estabelecer a futurição de uma ato, logo, a previsão de quem vai crer e quem não vai crer não pode ser algo que mude a vontade divina, justamente porque é o próprio Deus que torna tais eventos certos. Os molinistas caem nos mesmos erros dos arminianos, com a diferença que se prevê os méritos das criaturas através do conhecimento médio e não de uma simples presciência, como defendem arminianos. Adicionamos que João Damasceno (675-749 d.C) foi o desenvolvedor e criador dos termos dessa distinção e acreditava que Deus não determinava todas as coisas Pois, Damasceno diz: ‘Devemos saber que Deus tem presciência de tudo, mas nem tudo predetermina; assim tem presciência do que existe em nós, mas não o predetermina. Ora, os méritos e os deméritos estão em nós, por sermos senhores dos nossos atos, pelo livre arbítrio. Logo, o que pertence ao mérito ou ao demérito não é predestinado por Deus; e, assim, desaparece a predestinação do homem.’4 Em outras palavras, na mente do criador dessa distinção, não havia problemas em Deus ser o determinado ou causado em suas ações, pois o mesmo de fato considerava os méritos e deméritos das criaturas para só assim emitir tal e tal decreto. O posicionamento de Damasceno confirma a procedência de nossa objeção, porém não podemos também pensar que os teólogos posteriores não tentaram sanar tal dificuldade.
Uma das formas de evitar tal dificuldade é dizer que a vontade antecedente não é mudada, pois permanece de forma simultânea à vontade consequente, desse modo, como as duas visam ângulos diferentes, nem podem ser contraditórias, nem precisam ser rescindidas ou mudadas. Ao que concedemos que essa perspectiva responde à objeção acima adequadamente, no entanto gera outra dificuldade e para entendê-la precisamos voltar ao texto de 1 Tm 2.4, que diz: o qual deseja que todas as pessoas sejam salvas e cheguem ao pleno conhecimento da verdade. Consideremos então a objeção no seguinte silogismo:
1 – A vontade antecedente considera a criatura como criatura, cercada ou não de algumas circunstâncias, porém não considera todos os seus atos.
2 – Na vontade antecedente Deus quer salvar todos os homens sem exceção.
3 – Sendo a vontade antecedente nunca rescindida, então o homem, quando já estando no inferno, em estado de condenação definitiva, pode também ser considerado em si mesmo e não somente em seus crimes.
4 – Logo, o texto de 1 Tm 2.4, ao ensinar que Deus quer salvar todos os homens, também está ensinando que Deus quer salvar todos os homens que estão condenados no inferno.
A pergunta é: quem em sã consciência acreditaria que tal texto ou qualquer outro texto da Escritura ou qualquer teólogo da tradição cristã, em qualquer circunstância possa afirmar que Deus quer salvar o homem que já está condenado no inferno e que também enviou seu Filho para salvar os homens que já estão em estado de condenação definitiva? Notem que ao tentar sair de um problema, acabam entrando em outros problemas maiores e mais insolúveis. A não ser que neguem que o homem no inferno não seja mais homem, portanto, que não possa ser considerado em si mesmo.
Outro problema grave é que a distinção entre vontade antecedente e vontade consequente quando a vontade antecedente se localiza logicamente entre a queda e a consideração dos atos humanos em relação a emissão das graças falíveis é que ela pressupõe que o homem não pode ser condenado puramente pelo pecado original, algo que é negado por todos os teólogos com exceção dos pelagianos. Note, se tal vontade já considera o homem caído (e deve considerar de outro modo não haveria emissões de graças), e se há necessariamente uma vontade salvífica universal, em outras palavras, se tal vontade antecedente de salvação universal é uma vontade necessária em Deus, como defendem alguns proponentes, logo, a queda não pode ser condenatória, o que pressupõe que o homem não merece condenação até que ponha impedimento à graça. Se não merece condenação, tampouco tem pecado, o que nos leva fatalmente ao pelagianismo.
Já na ordem dos decretos, as maiores objeções são ao primeiro decreto e ao quarto decreto. O primeiro parece ser emitido logicamente depois da queda, ou seja, é o de Cristo sendo designado como salvador da humanidade, mas como gênero, sem pessoas em particular para serem salvas. Visto que a eleição e reprovação só se dá depois da previsão de quem fez bom ou mau uso da graça, e a graça é resistível, logo, existe um mundo possível em que todos resistiram a graça e o salvador não seria salvador. Então, o fato de Deus ter decretado Cristo como salvador, mediador, Rei, etc, seria totalmente inócuo se os homens não decidissem fazer bom uso da graça preveniente, ou seja, é um decreto dependente dos homens para se cumprir, pois caso os homens não quisessem ser convertidos, o grande Salvador de todos, na verdade, não salvaria ninguém, não seria Rei de ninguém, nem mediador de ninguém, portanto, deve-se rejeitar esse ponto de vista, pois implica que o decreto de Jesus ser o Cristo, era condicionado à ações humanas, o que torna Deus passivo e dependente de outros em sua vontade.
O quarto decreto é baseado em uma presciência simples. Essa presciência já foi refutada no capítulo passado, mas resumindo, Deus absorveria conhecimento das criaturas, pois apenas constataria o que independe Dele, para somente depois decretar quem seria salvo ou condenado. É um decreto dependente da vontade humana, o que impõe potência passiva em Deus.
Já os tomistas banhezianos, embora mais próximos da verdade, ainda caem em alguns erros. Vejamos agora como é a ordem lógica como exposta pelos tomistas banhezianos:
1 – Por sua ciência da inteligência simples, Deus conhece desde toda a eternidade todas as coisas possíveis com todas as suas infinitas combinações.
2 – Deus decide ordenar ao fim sobrenatural toda a raça humana. Vontade salvífica universal (vontade antecedente).
3 – Deus prevê e permite o pecado original, que vem para destruir esta ordenação da natureza humana ao fim sobrenatural. A raça humana se torna uma massa de perdição.
4 – Deus decreta a encarnação do Verbo para redimir a raça humana e ordená-la de volta ao fim sobrenatural.
5 – De entre a massa da perdição, ele escolhe livremente aqueles que quer e os predestina à glória em Cristo e por Cristo, sem levar em conta os méritos futuros ou futuríveis que eles mais tarde contrairão com a ajuda da graça.
6 – Por decreto absoluto, Deus decide dar aos eleitos as graças intrinsecamente eficazes para a realização das boas obras com as quais eles merecerão a vida eterna. Aos não-predestinados decide dar-lhes a graça suficiente para se salvarem, prevendo, no entanto, que resistirão a elas e se perderão por sua própria culpa.5
Então vejamos. No ponto 1, o conhecimento de Deus de todas as coisas possíveis depende do decreto que poderia ser emitido, não devemos confundir com uma ciência média, ou presciência simples, como se os acontecimentos estivessem fora da hipótese do decreto. Nesse ponto, nós calvinistas estamos de acordo.
Ponto 2 – Deus então intenta a salvação de todos os homens. A objeção a ser feita é: Como Deus pode ter como intenção salvar todos os homens se nesse momento lógico a queda não foi permitida ainda? Para que houvesse uma vontade de salvar todos os homens, Deus deveria primeiramente prever a queda, e então considerando o homem caído, exercer sua misericórdia de salvar. Porém os banhezianos acertam quando desidratam essa vontade antecedente, pois não há emissões de graças falíveis ou decretos condicionais como vemos no arminianismo, molinismo e também em outras escolas tomistas rivais. Os banhezianos acertam mais que seus rivais também quando consideram uma vontade antecedente sem considerar a queda, isso porque o homem é sempre homem, seja antes ou depois da queda, seja antes ou depois de seus atos, logo, se a vontade antecedente não pode ser rescindida, ou seja, se realmente não há uma mudança ou imputação de potência passiva em Deus, então a vontade de antecedente deve existir sem considerar a queda.
São Tomás, usa desse conceito, para fazer uma exegese de 1 Tm 2.4, que diz: Que quer que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade.
A interpretação de São Tomás, desse texto, é que Deus quis que todos os homens se salvassem com uma vontade antecedente que não levasse em consideração a queda ou qualquer condição má que cercasse esse homem. Mas veja que isso não pode ser justificado pelo texto, o texto se refere a homens pecadores, não a homens sem pecado. Antes disso Paulo está falando para orarmos por todas as pessoas: Admoesto-te, pois, antes de tudo, que se façam deprecações, orações, intercessões, e ações de graças, por todos os homens; Pelos reis, e por todos os que estão em eminência, para que tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade; (1 Tm 2.1,2), ou seja, são homens caídos, além disso, tem o fato de que os versículos posteriores ao texto em questão, fala da mediação entre Deus e os homens e a redenção de Cristo: Porque há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem. O qual se deu a si mesmo em preço de redenção por todos, para servir de testemunho a seu tempo.Então fica clara a eisegese desse texto por parte de São Tomás e pelos demais tomistas, molinistas e arminianos, ao considerar uma vontade salvífica a todos os homens sem levar em conta a queda (se se leva em conta a queda, mas não a previsão dos atos humanos diante da graça, então São Tomás é vítima de todos os problemas citados na disputa anterior com Jacob Armínio). Não há um outro sentido para a palavra salvação nesse texto, contra os escolásticos católicos, que chegaram a dizer que a palavra salvação, significa nesse contexto, apenas “saúde” (salus), ou seja, que Deus apenas quer o bem de todas as pessoas e que esse bem, ou um bem que leva a criatura para seu fim último, que é servir a Deus, portanto, Deus desejou a salvação de todos os homens. Mas isso ainda simplesmente diz que salvação não é salvação. Portanto, fica claro que é impossível, não só pela razão, querer salvar homens que não tem do que serem salvos, como também pela Escritura, diante da exegese do texto de 1 Tm 2.4, que de forma alguma trata de homens sem pecado, mas de homens pecadores.
Ponto 3 – Então agora Deus prevê a queda que destrói essa ordenação, na verdade, destrói a Sua intenção de salvar a todos. Além da primeira objeção, de como Deus considera salvar antes da destruição da ordenação da raça humana ao fim sobrenatural, a segunda pergunta é: porque Deus permite a queda Sua intenção era que não houvesse nenhum homem caído? A resposta que pode ser dada a essa pergunta é que Deus tem boas razões para permitir a queda e tem bens que só são exercidos por ocasião da existência dos males. Nós concordamos com isso, mas isso não responde o questionamento, uma vez que a intenção primeiríssima de Deus é salvar todos os homens, então, embora Ele pudesse permitir a queda, essa queda não poderia frustrar sua intenção primeiríssima, pois, se quem quer os fins, também quer os meios, então os meios devem ser consistentes com a execução do fim, não um meio de não execução do fim, isso é uma contradição em termos. Nesse sentido, rejeitamos totalmente esse significado de vontade antecedente e consequente, pois mostra frustração em Deus, e Deus jamais poderia ser o sapientíssimo e o felicíssimo, com seus desejos frustrados.
William Perkins faz uma objeção cabal a esse posicionamento quando diz:
Em primeiro lugar, ele argumenta um poder finito e insuficiência naquele que permite. Pois tudo o que alguém deseja e sinceramente deseja, isso ele realizará, a menos que seja impedido. Por exemplo: O comerciante deseja e deseja ardentemente salvar suas mercadorias, mas, sendo forçado por uma tempestade, a fim de que ele mesmo possa escapar, ele deseja absolutamente lançá-las ao mar. Sim, este tipo de vontade parece demonstrar impotência, porque Deus deseja o que não deve acontecer.6
Quanto aos pontos 4, 5 e 6, não há objeções que mereçam consideração.
A dificuldade de uma vontade antecedente e consequente surge quando se admite uma expiação ilimitada, ou seja, que Deus quer a salvação de todos, e, portanto, Cristo morre por todos, mas ao mesmo tempo, Deus quer aplicar sua justiça sobre quem não crê e tem sua intenção frustrada ao não poder salvar todos. Basicamente isso impõe fragilidade em Deus. Deus jamais poderia ser o felicíssimo se tivesse qualquer desejo seu frustrado pela criatura.
Visto que Deus não é um homem, o seu conhecimento é noutético, não há um momento sequer em que Deus ignore qualquer informação, seja no momento lógico, seja em um momento cronológico. Isso significa dizer que seria impossível Deus querer algo que Ele já sabia que jamais se concretizaria. Mesmo em uma perspectiva de previsão de méritos deméritos, Deus sabe desde sempre quem o aceitaria, e quem o rejeitaria, a ordem lógica dos decretos jamais nos é uma autorização para impor imperfeição em Deus, logo, como Deus pôde genuinamente ter desejado algo que Ele já sabia que nunca, jamais poderia ser concretizado?
Adicionamos mais um ao último caso, então objetamos aos pré-mocionistas banhezianos o seguinte – por que Deus não concedeu uma moção infalível a Judas, concedendo-lhe fé e justificação para que fosse salvo se Deus de fato o desejava salvar? Não se pode alegar que foi por causa da justiça divina, pois se assim fosse ninguém seria salvo, visto que nesse momento lógico todos já são considerados caídos. Ou seja, Deus quis, que Judas permanecesse em sua descrença e perecesse por conta dela, o que não é coerente com a intenção primeira de Deus, que era de salvar a todos, embora seja coerente com a justiça, mas não está em jogo a justiça, mas sim a coerência de querer salvar a todos. Para ficar melhor exemplificado, imaginem um homem que diz que quis ardentemente algo, e a execução desse algo depende unicamente dele. Esse homem também dispõe de todos os meios, força e vigor para isso. Que homem em sã consciência permitiria (podendo evitar) ou ordenaria algo que sabotasse seu próprio desejo? Quem estando com muita fome e uma vontade genuína e desimpedida de saciá-la, jogaria a própria comida fora? Se isso não pode ser considerado coerente em quem é imperfeito como um homem, quanto mais no Ser perfeito que é Deus, logo, vendo por esse último ângulo, essas vontades, como abordado no tomismo banheziano, são contraditórias, portanto, impossíveis de existir em Deus.
As analogias feitas por Santo Tomás e Jacó Armínio não respondem ao problema, mesmo que consideremos a proporção da analogia. Santo Tomás diz:
Por exemplo, em tudo, é bom para um homem viver e é ruim matá-lo; mas, se acontece que um homem assim é um assassino ou que sua vida é um perigo para a sociedade, é bom matá-lo e mau deixá-lo viver. E por essa razão, pode-se dizer que um juiz justo quer com vontade antecedente que todo homem viva, mas com a vontade consequente ele quer que o criminoso seja enforcado. Pois, de um modo análogo, Deus quer com vontade antecedente que todos os homens sejam salvos, mas com uma consequente vontade ele quer punir eternamente o pecador obstinado em sua maldade, porque sua justiça o requer.7
Jacó Armínio argumenta que:
Tampouco é verdade que, se alguém desejar seriamente alguma coisa, realizará a mesma de qualquer maneira, mas desejará fazê-la das maneiras adequadas para que aconteça. Um pai pode desejar e propor, seriamente, que seu filho obedeça a ele, mas ele não o obriga, violentamente, à obediência, pois não seria obediência. Um pai deseja, seriamente, que seu filho se abstenha da intoxicação, mas não o confina em uma câmara onde ele não possa se embriagar ou se drogar. Um pai pode desejar seriamente dar a herança paterna ao seu filho e, por uma vontade consequente, a saber, a que se segue à contumaz e obstinada iniquidade do filho, desejar deserdá-lo. Pode ser que este pai não faça todas as coisas que estiverem em seu poder para que o seu filho não peque. Pois era possível que o pai conservasse seu filho preso e acorrentado para que ele não pecasse. Mas era tão adequado que o pai não usasse esse modo de restrição, quanto desejasse a herança para seu filho.8
Julgamos que os dois exemplos são inadequados e não correspondem aos fatos, sendo uma falsa analogia. Uma coisa são os homens, outra coisa é Deus. O exemplo serve até mesmo para ratificar nosso ponto de vista, de que Deus se torna impotente ao ter sua vontade frustrada, que é exatamente o que os exemplos colocados acima nos dizem. Um homem, pode realmente querer algo genuinamente e não concretizar seu desejo, mas isso se dará pela falta de meios, por causa de sua limitação, não porque ele pode e não faz. Não é um ato da criatura que alterará a vontade de Deus. Deus nunca deixa de dispor de meios justos e apropriados para executar o que quer que seja em relação as suas criaturas, se a intenção de tais exemplos é demonstrar que Deus quis de fato salvar toda a humanidade, endossando assim a veracidade da vontade antecedente e consequente como entendida pelos já citados, eles não só falham, como demonstram positivamente sua impossibilidade. Os exemplos corretamente elaborados seriam: “um juíz que já sabe que o réu não será obediente, a menos que ele mesmo o supra de uma graça eficaz que lhe dará uma mente voltada para o bem, e tendo total poder para isso, deliberadamente não faz, quer seriamente que esse réu seja obediente?” O mesmo vale para o exemplo de Jacó Armínio, basta substituir a palavra juiz por pai e réu por filho. Se Deus é onipotente, então a vontade antecedente e consequente conforme ensinada pelos tomistas, arminianos e molinistas não podem ser verdadeiras.
Em último lugar, a distinção da vontade antecedente e consequente está de alicerçada, dependendo do autor, em maior ou menor grau em uma previsão do bom ou mau uso da graça, do impedimento ou não impedimento que um Homem põe à graça. Se considerarmos que tudo que acontece de bom ou ruim jamais foge da providência divina, então o não impedimento e o impedimento no que consta ao homem também está debaixo da providência, mas não geral e indiferente, mas sujeita a uma providência particular, pois tudo que é bom, vem do alto, e é feita pela vontade eficaz de Deus, quanto tudo que é mau, acontece porque Deus não impede esse mal. Ora, não por impedimento é algo bom, por impedimento é algo ruim, logo se existe uma tal condição é somente no tocante à causa segunda mas nunca na ordem transcendental pois as atitudes humanas só podem ser atualizadas se existir um decreto, logo, como Deus teria uma vontade antecedente que quer salvar a todos se é Ele mesmo quem decide impedir ou não impedir o homem de fazer o mal, ou seja, de resistir à graça? Não existe “se” para Deus. Não existe partícula condicional para Ele, pois o “se” significa indeterminação e como que um evento é indeterminado em relação à causa primeira? A única alternativa seria tornar Deus determinado enquanto a criatura O determina. Assim, toda e qualquer distinção entre vontade antecedente e vontade consequente que ensine que Deus leva em conta uma decisão de pôr ou não pôr impedimentos à graça sugerindo uma indeterminação ou ociosidade por parte de Deus, implícita ou explícita, deve ser rejeitada por impôr potência passiva em Deus.
No calvinismo, acreditamos que a vontade de Deus é una, mas considerando a possibilidade de que haja alguma ordem de decretos Naquele que tudo sabe sem progressão alguma, consideramos uma dupla ordem as obras de Deus: uma é a obra da providência e outra é a obra da predestinação. Na ordem da providência Deus primeiramente, em sua vontade antecedente, quis manifestar sua glória na criação e então na permissão da queda. Conforme a ordem da predestinação, Deus com sua vontade antecedente quer manifestar sua glória pela misericórdia, elegendo muitos dentre os caídos e providenciando redenção a estes, e sua justiça, deixando outros aos seus próprios pecados. No entanto, entendemos a salvação em três modos: destinação, aquisição e aplicação. Então há três decretos em relação a ela: eleição, redenção e vocação. Assim, Deus por sua eterna bondade, mostra sua misericórdia à raça humana, pois dado que todos caíram, a humanidade inteira estaria destinada ao inferno, Deus então elege incondicionalmente a muitos, para evitar a tragédia da humanidade inteira se perder, e a outros ele “passa por cima”, e entrega aos seus próprios caminhos, para executar seu juízo. Isso servirá como um meio de lembrar ao homem no futuro, que o pecado não fica sem punição, pois se todos são salvos, os seres humanos poderiam pensar que nada acontece caso pequem, já que todos foram salvos. Mas, visto que, ele não poderia exercer misericórdia sem livrá-los da ira divina, então decreta a morte do cordeiro, que será o expiador dos pecados dos eleitos, adquirindo para eles salvação, fé e santificação. Após a criação, queda, eleição e reprovação, morte de Cristo, temos o chamado eficaz, no qual Deus concede a graça eficaz para todos os eleitos, por ocasião da pregação da Palavra de Deus. Através da graça, ao homem é dado fé, arrependimento e justificação, tudo pelo mérito de Cristo, que salva o eleito incondicionalmente. Não há espaço para previsão de méritos. A reprovação prevê méritos somente no tocante ao pecado original, que é condenatório, visto que todos já eram perdidos por seus próprios méritos, continuam assim, a isso, chamamos de dupla predestinação assimétrica. A dupla predestinação simétrica, posicionamento em que Deus elege ativamente e reprova ativamente, sem previsão alguma de mérito, foi condenada no Sínodo de Dort, portanto, o calvinismo oficial defende que Deus elege ativamente, e aos outros ele somente deixa entregues à sua própria miséria, que entrou por conta própria. Cai aqui um mito, a de que Deus criou pessoas para ir para o inferno, senão que as pessoas caíram por sua própria vontade, se lançando ao inferno, e Deus agora, usa de sua misericórdia, salvando muitos com sua graça. João Calvino diz:
Portanto, se alguém nos acometer com palavras desta natureza: Por que Deus no início predestinou alguns à morte, os quais, como ainda não existissem, não podiam ainda ser merecedores de juízo de morte, à guisa de resposta lhes indaguemos, por nossa vez, se pensam que Deus deve algo ao homem, caso o queira estimar por sua própria natureza? Como estamos todos infeccionados pelo pecado, não podemos deixar ser odiosos a Deus, e isso não por crueldade tirânica, mas por razão de justiça mui equitativa. Porque, se todos são passíveis de juízo de morte, por condição natural, os que o Senhor predestina à morte, pergunto de que iniquidade sua para consigo, se hajam de queixar-se?9
Continua o reformador:
Ora, se nós não estamos realmente envergonhados do Evangelho, precisamos necessariamente reconhecer o que está nele abertamente declarado: que Deus, por sua eterna bondade (para a qual não houve nenhuma causa senão seu próprio propósito), nomeou aqueles que quis para a salvação, rejeitando todos os demais; e que aqueles a quem ele abençoou com essa livre adoção para serem seus filhos ele ilumina pelo seu Santo Espírito, para que possam receber a vida que lhes é oferecida em Cristo; enquanto que outros, continuando de vontade própria em descrença, são deixados destituídos da luz da fé, em escuridão total. 10
Dr Sproul emite o parecer:
A teologia reformada clássica rejeita a doutrina de ultimação igual11. Embora alguns tenham rotulado essa doutrina de “hipercalvinismo”, eu prefiro chamá-la de “subcalvinismo”, ou, até mais precisamente, “anticalvinismo”. Ainda que o calvinismo certamente mantenha uma espécie de predestinação dupla, ela não abraça a ultimação igual. A visão reformada faz uma distinção crucial entre os decretos positivos e negativos. Deus decreta positivamente a eleição de alguns e negativamente decreta a reprovação de outros. A diferença entre positivo e negativo não se refere ao final (conquanto o resultado de fato seja ou positivo ou negativo), mas à maneira pela qual Deus faz acontecer seus decretos na História. 12
Francis Turretin diz:
Segundo essa ordem, o primeiro decreto relativo a nos diz respeito a criação do homem. O segundo diz respeito a permissão de sua queda, pela qual ele arrastou consigo a ruína e destruição toda sua posteridade. O terceiro diz respeito à eleição para a salvação de alguns dentre a raça humana caída e ao abandono dos demais a sua corrupção e miséria naturais. O quarto diz respeito ao envio de Cristo ao mundo como Mediador e fiador dos eleitos. Havendo apaziguado a justiça de Deus por sua perfeitíssima obediência, Cristo obteve somente para eles a plena salvação. O quinto diz respeito a sua vocação eficaz pela pregação do evangelho e pela graça do Espirito Santo, dando-lhes fé, justificação, santificação e, por fim, glorificação13
Assim também está nos Cânones de Dort:
7. Esta eleição é o imutável propósito de Deus, pelo qual Ele, antes da fundação do mundo, escolheu um número grande e definido de pessoas para a salvação, por graça pura. Estas são escolhidas de acordo com o soberano bom propósito de sua vontade, dentre todo o gênero humano, decaído pela sua própria culpa de sua integridade original para o pecado e a perdição. Os eleitos não são melhores ou mais dignos que os outros, porém envolvidos na mesma miséria dos demais. São escolhidos em Cristo, quem Deus constituiu, desde a eternidade, como Mediador e Cabeça de todos os eleitos e fundamento da salvação.14
10. A causa desta eleição graciosa é somente o bom propósito de Deus. Este bom propósito não consiste no fato de que, dentre todas as condições possíveis Deus tenha escolhido certas qualidades ou ações dos homens como condição para salvação. Mas este bom propósito consiste no fato de que Deus adotou certas pessoas dentre da multidão inteira de pecadores para ser a sua propriedade.15
Ao posicionamento em que Deus elege homens dentre os caídos, chama-se infralapsarianismo16, e o que ensina que Deus elegeu e reprovou sem levar em consideração a queda, é o supralapsarianismo. A posição supralapsariana não foi diretamente condenada em nenhum documento, embora possam haver indícios nos cânones de Dort. Primeiro porque em Dort fora condenada a dupla predestinação simétrica, ou seja, quando se ensina que a eleição e reprovação tem a mesmíssima natureza em Deus, logo, os supralapsarianismos do tipo “alto” devem ser evitados. Em segundo lugar, após os Cânones de Dort endossarem o infralapsarianismo, está afirmado queEste é o decreto da eleição e reprovação revelado na Palavra de Deus, ou seja, se o infralapsarianismo é o que está revelado na Palavra de Deus, então o supralapsarianismo não está revelado, devendo ser rejeitado.
O reverendo Franklin Ferreira, também observa:
A maioria dos teólogos reformados afirmou a posição infralapsariana, e todas as confissões reformadas também a ensinam, contudo, sem condenar o supralapsarianismo. Entre os teólogos que defenderam o conceito infralapsário podem ser mencionados Agostinho, François Turretini, Charles Hodge, A. A. Hodge e B. B. Warfield. Entre as confissões reformadas, destacam-se a Confissão Belga (artigo 16), o Catecismo de Heidelberg (pergunta 54), os Cânones de Dort (1.7-10), a Confissão de Westminster (artigo UI) e o Breve Catecismo de Westminster (perguntas 19 e 20)17
Complementando a citação do Rev Franklin Ferreira, é importante ressaltar que há vários tipos de supralapsarianismos, e como já vimos, pelo menos um deles podemos enquadrar no que as confissões condenam.
Concluindo: Não há espaço para uma vontade salvífica de todos os homens. A distinção entre vontade antecedente e consequente não alcança seu intento, caindo em problemas maiores do que os que pensam resolver.
Referências
1CRISÓSTOMO, J. Comentário as cartas de São Paulo/1. Homilia sobre a carta aos Efésios. Paulus.
1ZANCHIUS, J. A Doutrina da Predestinação Absoluta. Theóphilus Editora. São Luís-MA. 2021. p 19.
2 ARMÍNIO, J. As Obras de Armínio. Vol 3. CPAD. 2015. p 541 (versão digital)
3ARMÍNIO, J. As Obras de Armínio. Vol 1. CPAD. 2015. p 279 (versão digital)
4 AQUINO, T. Suma Teológica. 1. 23. 1.
5 BEZERRA, LL, Sobre a complexa relação entre a divina providência, presciência, predestinação e o mal na polêmica “De Auxiliis”: o debate entre Molina e Báñez, e a sua síntese em Zumel. 2018. Seção 7.
6PERKINS, W. Tratado Cristão Sobre a Maneira e Ordem da Predestinação. Theóphilus Editora. 2021. p 94.
7AQUINO apud MARIN, A.R. Dios y su Obra. Biblioteca de autores cristianos. 1963. p 167
8ARMÍNIO, J. As Obras de Armínio. Vol 3. CPAD. 2015. p 542 (Versão digital)
9CALVINO, J Institutas. 3.22.3
10 CALVINO apud SPROUL, R.C. O que é teologia reformada. Cultura Cristã. 2009. p 134-137
11O mesmo que dupla predestinação simétrica.
12SPROUL, R.C. O que é teologia reformada. Cultura Cristã. 2009. p 134
13TURRETINI, Vol 1, 2011, p 545
14Cânones de Dort Seção 1.7
15Cânones de Dort Seção 1.10
16Também chamado de sublapsarianismo.
17FERREIRA, F. MYATT, A. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. Vida Nova. São Paulo. 2007. p 306