Gyordano Montenegro BRASILINO1
Artigo Publicado originalmente na Revista Teológica da Faculdade Presbiteriana Fatesul.
RESUMO
Este artigo se propõe a lançar esclarecimentos sobre o fundamento de certa interpretação da obra de Santo Agostinho de Hipona (354–430), filósofo de grande relevância e impacto para a história do pensamento ocidental, particularmente no período medieval. Segundo a interpretação que Vincent Cheung impõe ao De magistro de Agostinho, este seria um defensor de certa forma de ocasionalismo epistemológico, dissociando metafisicamente os objetos dos sentidos e o conhecimento que se tem deles, atribuindo apenas a Deus um papel causal de colocar na mente humana os conhecimentos relativos aos objetos de percepção. O estudo aqui conduzido toma duas vias: em primeiro lugar, a da análise comparativa com outras obras de Agostinho, particularmente o De trinitate, no qual a teoria da percepção é esmiuçada; em segundo lugar, a análise contextual das referências usadas por Cheung, procurando observar continuidades ou rupturas entre diferentes fases da obra agostiniana. Ambas as vias pressupõem uma análise prévia de conceitos epistemológicos presentes na obra agostiniana, especificamente a distinção entre ciência e sabedoria, assim como a teoria da iluminação e a teoria ativa da percepção, noções que fornecem o contexto em que a epistemologia agostiniana se esclarece.
PALAVRAS-CHAVE
Epistemologia, Iluminação, Ocasionalismo, Teoria da Percepção.
INTRODUÇÃO
Não é de hoje que a obra do bispo de Hipona se presta a interpretações diferentes e polêmicas. Tanto em sua própria época, como evidencia o debate com Pelágio, quanto nos períodos da Escolástica e da Reforma Protestante, até os dias de hoje, os escritos de Santo Agostinho renderam debates acalorados, às vezes com lados distintos vendo nele um precursor de suas próprias ideias.
Algo semelhante ocorre com a interpretação a que Vincent Cheung lhe submete. Em sua obra Questões Últimas, Cheung defende uma “metafísica cristã” com diversas implicações para a teoria do conhecimento ou epistemologia. Essa metafísica solucionaria diversos problemas, como a relação mente-corpo, partindo da premissa de que Deus é o causador de todos os eventos do mundo, sem a necessidade de outras causas, mesmo que subordinadas.
Assim, não seria necessário associar causalmente os eventos do univers. A relação entre eles seria apenas ocasional, isto é, diversos eventos seriam apenas ocasiões nas quais Deus causa soberanamente certos acontecimentos. Essa concepção defendida por Cheung é uma forma de ocasionalismo, nomenclatura que ele mesmo aceita e endossa (2005b). Tratando especificamente do conhecimento sensível, através da percepção sensorial, Cheung comenta:
“A única função das sensações na epistemologia cristã é fornecer as ocasiões para a intuição intelectual; isto é, as sensações fornecem as ocasiões sobre as quais o logos comunica informação à mente humana, aparte [sic] das próprias sensações. Nenhum conhecimento é adquirido a partir das próprias sensações.” (2005a, p. 40)
Sua concepção epistemológica deriva naturalmente de sua metafísica: se não há causas além de Deus, mas apenas ocasiões, também a relação entre (1) objetos sensíveis, (2) percepções desses objetos e (3) conhecimento desses objetos é meramente ocasional, causada por Deus, sem um processo natural que explique como o modo a percepção dos objetos sensíveis causa o conhecimento. Nesse mesmo contexto, Cheung aduz a obra De magistro2, de Santo Agostinho, como parte de sua argumentação.
O autor parece atribuir a Agostinho a mesma posição, ou ao menos uma posição próxima ao seu ocasionalismo, isto é, como o defensor de um tipo de ocasionalismo epistemológico, assim entendido como uma negação da existência de vínculo causal essencial entre os sentidos e o conhecimento. Isso destoa vigorosamente de outros tratamentos da obra agostiniana e de sua teoria da percepção, como o de Étienne Gilson, para quem: “Não há qualquer traço de ocasionalismo ou inatismo do conhecimento sensível na filosofia agostiniana.” (2010, p. 119). De fato, como se mostra a seguir, várias obras agostinianas, como o De Trinitate, parecem afirmar vigorosamente o conhecimento sensorial.
Seriam essas duas interpretações diferentes inerentes ao próprio texto agostiniano, como contradição entre dois momentos de sua obra, ou a diferença estaria apenas nas leituras feitas pelos diferentes autores?
Estudos sobre a epistemologia da obra agostiniana podem eventualmente observar um desenvolvimento de Santo Agostinho nessa questão, não necessariamente evolutivo: às vezes mais pessimista e às vezes mais otimista quanto à possibilidade, alcance e natureza do conhecimento sensorial e perceptivo. Isso significaria que o Agostinho do De magistro é radicalmente diferente do Agostinho do De trinitate? Para efeitos de comparação, usaremos os trechos epistemológicos do De trinitate, em razão da maturidade do seu pensamento.
Pergunta-se, concomitantemente, se há uma consistência lógica ou, ao menos, um fundo comum nas diversas abordagens de Agostinho acerca do estatuto filosófico do conhecimento empírico, ou se, ao contrário, esses diferentes tratamentos, como mudanças paradigmáticas, não se prestam a um estudo sistemático. Há continuidade ou descontinuidade?
Trata-se, portanto, de um problema epistemológico, desdobrando-se sobre a perspectiva agostiniana acerca da natureza e limites do conhecimento humano, mas enfocando o conhecimento sensível, isto é, o conhecimento que está, de algum modo, enraizado nos sentidos, e de que maneira isso se dá.
1. A DISTINÇÃO AGOSTINIANA ENTRE CIÊNCIA E SABEDORIA
Na presente investigação, é necessário primeiramente esclarecer uma distinção que Santo Agostinho faz em sua obra, quanto a dois modos de conhecimento: a ciência (scientia) e a sabedoria (sapientia). Essa distinção radica-se em duas operações da razão: uma inferior e outra superior. Ele escreveu, no livro XII do De trinitate, dedicado às reflexões epistemológicas:
Quanto a essa parte de nosso ser que se ocupa da ação das coisas temporais e corporais e que não nos é comum com os animais, certamente relaciona-se com a razão. Mas se deriva dessa substância racional de nossa mente, pela qual aderimos à verdade superior inteligível e imutável, ela está entretanto como destinada ao trato com as coisas inferiores e apta a governá-las. (1995, p. 367, XII 3.3)
Agostinho descreve aí a “razão inferior”, parte da alma que nos aproxima dos animais; para Agostinho, pertence ao “homem exterior” aquilo que temos, na alma, em comum com os animais, e isso inclui os “sentidos corporais, instrumentos esses da percepção do mundo exterior” (1995, p. 365 , XII 1.1) e até mesmo a capacidade de recordação através da memória. A mesma alma incluiria essas capacidades inferiores (a ação) e superiores (a inteligência).
É a partir dessa dualidade na alma que Santo Agostinho constrói a distinção entre ciência e sabedoria, que aparece de duas maneiras no livro XII do De trinitate. Assim:
“Nessa distinção, a sabedoria refere-se à contemplação e a ciência à ação.” (1995, p. 387, XII 14.22) | “(…) a sabedoria é o conhecimento intelectivo das realidades eternas; e a ciência, o conhecimento racional das coisas temporais. E a primeira, sem nenhuma dúvida, tem a preferência.” (1995, p. 392, XII 15.25) |
A conexão entre essas duas distinções é prontamente compreensível quanto à sabedoria, já que facilmente se associa contemplação e o conhecimento intelectivo das realidades eternas. Mas a ciência da ação e a ciência das coisas temporais pode ser a mesma? Agostinho as conecta noutro parágrafo do mesmo livro, no qual declara que a ciência da ação raciocina sobre os próprios objetos temporais percebidos pelos sentidos do corpo (1995, p. 383, XII 12.17). A ação humana estaria voltada, de várias maneiras, para as realidades sensíveis; portanto, uma mesma seria a ciência da ação e a ciência das coisas temporais.
Apesar dessas distinções, Agostinho visualiza no divino a origem de ambos os conhecimentos, seja sabedoria, seja ciência: “Portanto, nossa ciência é Cristo e nossa sabedoria é igualmente Cristo” (1995, p. 432, 19.24). Essa ciência e sabedoria não estariam acessíveis apenas aos cristãos, mas foram localizadas, por exemplo, também pelos filósofos pagãos.
Disso se depreende que Agostinho localiza de maneira especial o conhecimento sensível, como ciência, distinto do conhecimento mais elevado das verdades eternas, a sabedoria, e vê nesses conhecimentos “fontes” diferentes, isto é, diferentes processos pelos quais o conhecimento se dá, apesar de terem ambos o mesmo fundamento epistemológico divino.
A “preferência” mencionada por Agostinho mostra algo importante. Essa distinção agostiniana obedece a estrutura hierarquizada de sua cosmologia. Há uma hierarquia dentro do próprio homem, e aquilo que ele tem de mais próximo de Deus está hierarquicamente superior àquilo que ele tem mais próximo dos animais. Sobre isso, Gilson esclarece:
No seu universo hierarquizado, todos os seres necessariamente são superiores ou inferiores uns aos outros unicamente pelo fato de serem diferentes, e, para ele, trata-se de um princípio primeiro que o inferior não pode agir sobre o superior. (2010, p. 124)
Essa hierarquização traz consequências para o modo como Agostinho desenvolve sua teoria da percepção no contexto da epistemologia, revelando um importante paralelismo no qual a teoria agostiniana da percepção é esclarecida e distinguida de outras narrativas fenomenológicas mais contemporâneas.
O paradoxo que desde já se coloca é: se a alma é superior aos sentidos, como podem os sentidos produzir um efeito na alma? Esse paradoxo recoloca o problema da percepção na relação entre alma e corpo. Tal descrição hierarquizada se traduz facilmente em uma prescrição hierarquizada, evidenciando uma preferência platônica pelo interior, em relação ao exterior, em nítida contraposição com o que ele visualiza como sendo a tendência humana comum, que favorece o exterior. Ele escreveu:
Em conseqüência de nossa condição humana, que nos converte em seres mortais e carnais, lidamos mais fácil e familiarmente com as realidades visíveis do que com as inteligíveis. […] e de tal modo nossa atenção resvala para o mundo exterior, que ao ser arrastada da incerteza do mundo corporal para se fixar no espiritual, com conhecimento muito mais certo e estável, a nossa atenção retorna ao que é sensível e deseja aí repousar – justamente de onde vem sua fraqueza. (1995, XI, 1,1.)
A hierarquia também se conecta, portanto, com um outro contraste: entre a “incerteza do mundo corporal” e o “conhecimento muito mais certo e estável”. Assim, haveria maior incerteza na ciência e maior certeza na sabedoria, não porque naquela haja um conhecimento falho, mas por conta da mutabilidade dos seus objetos.
2. CONHECIMENTO COMO ILUMINAÇÃO
Um traço importante a ser discutido dentro da teoria agostiniana do conhecimento perceptivo é a relação entre essa mesma percepção e o fundamento metafísico de todo o conhecimento em Deus. Santo Agostinho radicava o conhecimento em uma forma de iluminação divina, teoria de inspiração ao mesmo tempo platônica na filosofia e cristã na teologia. Como isso aparece em sua obra?
De acordo com os postulados dessa teoria, que Santo Agostinho repassa as gerações posteriores e chega a influenciar, em forma mitigada, até mesmo São Tomás de Aquino, todo o conhecimento humano deriva de Deus, o plantador desse conhecimento na alma humana.
Isso se relaciona ao modo como Santo Agostinho substitui a doutrina platônica da reminiscência. Uma vez que Agostinho era cristão e que via todas as coisas como existindo em Deus, o próprio Deus era o responsável por ocupar o lugar que na teoria platônica cabe ao mundo das ideias. Não haveria possibilidade de reminiscência em sentido estritamente platônico, isto é, um tipo de conhecimento inato cuja raiz estaria em um passado anterior ao nascimento, já que Santo Agostinho não professava a crença em uma “vida prévia” ou transmigração das almas.
Dessa maneira, o conhecimento iniciava quando a vida humana iniciava, sem a possibilidade de um conhecimento cronologicamente anterior. As diferentes verdades do mundo são conhecidas em Deus e através de Deus. Rejeitando a teoria platônica da reminiscência, Agostinho escreveu:
Ora, se fossem apenas recordações de conhecimentos anteriores, nem todos, nem mesmo uma maioria que fosse, poderia se lembrar ao serem interrogados sobre esse determinado assunto. Pois nem todos devem ter sido geômetras na vida anterior, visto que esses são tão poucos entre os homens que dificilmente se encontra alguém. Assim, é preferível acreditar que a natureza da alma intelectiva foi criada de tal modo que, aplicada o inteligível segundo sua natureza, e tendo assim disposto o Criador, possa ver esses conhecimentos em certa luz incorpórea de sua própria natureza. (1995, p. 390, XII 15.24)
Quanto à base teológica dessa epistemologia, pode se ver uma inspiração em diversos textos das Escrituras que tratam do modo como Deus concede sabedoria aos homens, e particularmente quando esses textos fazem uso da metáfora da luz aplicada a Deus. Agostinho eventualmente cita as Escrituras quanto à metáfora da luz, mas ela também está em Platão, como na alegoria da caverna, na qual a luz do sol aparece como iluminação da verdade, em contraposição com a escuridão da caverna.
Gilson (2010, pp. 160-161) vê nessa junção de filosofia e literatura sagrada a inspiração da teoria agostiniana da iluminação, observando, quanto à filosofia, inspiração em Plotino. Essa filosofia seria, por isso, consonans Evangelio, concordante com o Evangelho, particularmente o Evangelho de João, no qual a metáfora da luz encontra destaque. Gilson comenta, elaborando sobre a metáfora iluminativa:
“Comparar Deus a um sol inteligível é, de início, marcar a diferença entre o que é inteligível por si e o que deve ser tornado inteligível para sê-lo. O sol é, ele é luminoso e torna luminosos os objetos que ilumina. Assim, há uma grande diferença entre o que é visível por natureza, como a luz solar, e o que é visível somente por uma luz emprestada, como a terra quando o sol a ilumina.” (2010, p. 162)
Diante disso é importante se perguntar se Santo Agostinho preserva ou modifica, seguindo outros paradigmas, o “desgosto platônico” pelo conhecimento sensorial, ou recoloca as preocupações platônicas em um esquema diferente.
3. TEORIA DA PERCEÇÃO ATIVA
Como dito acima, um paradoxo importante com o qual nos deparamos, na obra agostiniana, diz respeito à relação entre percepções sensíveis (corpo) e os conhecimentos (alma). Se a alma é hierarquicamente superior ao corpo, cabendo-lhe uma posição análoga à de “governo”, como pode o corpo agir sobre a alma? Parte do esclarecimento dessa questão se dá através do modo como Agostinho entendia a percepção: em sua teoria, ele afirmava uma forma de percepção ativa.
No De quantitate animae, Agostinho definiu a sensação como “a percepção pela alma do que sofre o corpo” (2008, p. 305, 23.41), o famoso non latere animam quod patitur corpus a que a literatura faz referência. O corpo assume um papel passivo na percepção, enquanto a alma é ativa. Portanto, cabe a alma apenas atentar para aquilo que ocorre no corpo. A esse respeito, Gilson comenta que, por a alma ser, na percepção sempre ativa, “basta que as modificações sofridas por esses órgãos não escapem a ela e penetrem no campo de sua atenção” (2010, p. 134).
Isso permite a Agostinho preservar, por um lado, a hierarquia da alma em relação ao corpo, a qual jamais assume um lugar passivo; mas, por outro lado, permite abraçar a descrição mais fenomenológica da percepção, na qual há uma passividade no ser humano, agora localizada no corpo. Assim, a alma é ativa, o corpo é passivo. Por isso, frequentemente Agostinho fala da percepção como se dando através do corpo. A alma “adquire noções sobre coisas corpóreas servindo-se dos sentidos corporais” (1995, p. 290, IX 3.3).
Essas considerações ensejam uma nova observação quanto à teoria agostiniana da percepção: sua doutrina da iluminação não diz respeito às percepções propriamente ditas. Essa iluminação estaria restrita aos inteligíveis, conhecimentos mais puramente racionais, com exclusão dos sensíveis, e isso seria parte da refutação da doutrina platônica da reminiscência: se houvesse reminiscência, ela deveria incluir os sensíveis, mas inclui apenas os inteligíveis, já que todo conhecimento sensível está conectado a certas experiências (AGOSTINHO, 1995, XII 15.24; GILSON, 2010, p. 175). Portanto, a doutrina platônica precisou ser modificada. Essa distinção pode ser igualmente observada no De trinitate, particularmente no trecho já citado a propósito da teoria da iluminação (1995, XII 15.24).
4. CONHECIMENTO SENSÍVEL NO DE TRINITATE
Agostinho dedica-se, no De trinitate, a explicar o dogma trinitário em diversas nuances. Embora afirme ser a Trindade um mistério que necessita da demonstração pautada nas Sagradas Escrituras (1995, p. 27, I 2.4), ele enxerga no ser humano, nos livros VIII a XV, diversas analogias trinitárias, maneiras pelas quais uma estrutura triádica análoga à trindade (unidade de três) pode ser vista, comparativamente, no homem e em suas faculdades, inclusive na percepção sensível.
Assim, esses livros do De trinitate apresentam de várias maneiras a epistemologia agostiniana em geral e a teoria da percepção em particular, embora a análise aqui se detenha principalmente nos elementos relevantes ao tema do ocasionalismo. Particularmente sobre as analogias trinitárias, é relevante notar que:
Com efeito, no livro XI desta obra, Agostinho admite existir, no processo pelo qual se dá o conhecimento sensível, certas trindades ou analogias trinitárias que ajudarão ao leitor a compreender o mistério da excelsa Trindade, Deus. Estas analogias estão presentes no homem exterior, isto é, na capacidade que o homem tem de lidar com as realidades corpóreas e, a partir destas, produzir imagens como a lembrança e a própria sensação. (COUTINHO, 2012, p. 3)
Na visão, o sentido corpóreo mais privilegiado por Agostinho, a “trindade” seria entre: o objeto observado, a própria visão e a atenção da alma (ibid., p. 4). Essa tríade é coerente, inclusive, com a primazia da alma em relação ao corpo, já mencionada, uma vez que a atenção da alma se torna fundamental no ato perceptivo, não se limitando a uma ligação entre a apreensão meramente sensitiva e o objeto.
No livro XV do A Trindade, Agostinho lida com certas formas de ceticismo associadas à Nova Academia, que tentava impugnar o conhecimento, inclusive o conhecimento sensorial, através das chamadas “dúvidas céticas”, a que ele caracteriza como “parvoíces”. Ele escreve:
Existem ainda outras razões válidas contra os neo-acadêmicos, esses filósofos que propugnam a ignorância absoluta do homem.
Mas não é oportuno estendermo-nos muito, principalmente porque não é essa a finalidade desta obra. Há três livros nossos, escritos na época de nossa conversão. Os que puderem e quiserem lê-los, e, lidos, entendê-los, os muitos argumentos inventados pelos filósofos neo-acadêmicos, contra a percepção da verdade, em nada os perturbarão.
Sabemos que há dois tipos de conhecimento: um, das coisas que a alma capta pelos sentidos corporais; outro, das coisas que percebe por si mesma. Aqueles filósofos disseram muitas parvoíces contra o testemunho dos sentidos do corpo. Não conseguiram, porém, pôr em dúvida certas percepções imediatas da alma sobre as coisas verdadeiras como aquela afirmação a que me referi acima: “Sei que vivo.”
Longe de nós, também, duvidar da verdade que nos vem pelos sentidos corporais. Por meio deles, atestamos a existência do céu e da terra e de tudo o mais que eles contêm, na medida que aquele que nos criou a nós e a eles, quis que deles tivéssemos conhecimentos. (1995, p. 512, XV 12.21b)
O trecho acima, especialmente dado o seu contexto polêmico explícito, está em continuidade com os traços já delineados da teoria agostiniana da percepção. Aí se mostra, de certo modo, a distinção entre as percepções imediatas da alma (coisas que ela percebe por si mesma) e as percepções da alma mediadas através dos sentidos. Há, portanto, uma clara afirmação de um tipo específico de conhecimento, de natureza sensitiva, isto é, dependente dos sentidos.
No mesmo contexto, Agostinho afirma também o conhecimento através do testemunho, reafirmando que há uma percepção através dos sentidos corporais. “Todas as coisas que a alma humana sabe por si mesma e que percebe pelos seus sentidos corporais e também pelos testemunhos alheios, ela as guarda no tesouro da memória.” (ibid., p. 513, XV 12.22a) Também no De trinitate, Agostinho confirma que sua teoria da iluminação divina diz respeito às verdades inteligíveis, distinta percepção sensível.
Assim, é preferível acreditar que a natureza da alma intelectiva foi criada de tal modo que, aplicada o inteligível segundo sua natureza, e tendo assim disposto o Criador, possa ver esses conhecimentos em certa luz incorpórea de sua própria natureza. Assim acontece com o olho do corpo que vê os objetos que o cercam na luz natural, pos pode-se acomodar a essa luz, já que para ela foi feito. (ibid., p. 390, XII 15.24)
Vê-se aí um paralelismo importante entre a luz natural, que é o meio no qual a visão é possibilitada, e a luz incorpórea, a iluminação divina que possibilita o conhecimento inteligível3. Assim, não se pode dizer, até aqui, que haja na epistemologia agostiniana uma causação divina direta do conhecimento sensível tanto quanto do inteligível. Qualquer noção de uma causação direta acaba por solapar a distinção que Agostinho intenta preservar.
5. OCASIONALISMO EPISTÊMICO NO DE MAGISTRO?
Se até aqui vê-se na obra agostiniana uma clara afirmação do conhecimento sensível, passamos a perguntar se o tratamento que esse tipo de conhecimento recebe no De magistro é consistente com as observações feitas até aqui, ou se, ao contrário, ele destoa de tais observações, evidenciando uma ruptura conceitual no posicionamento de Agostinho.
É importante notar, previamente, que o De magistro não é uma discussão pormenorizada da teoria da percepção, mas sim um diálogo sobre a teoria do signo, lidando mais particularmente com linguagem e educação, e é incidentalmente que se toca no tema da percepção propriamente dita. O título que lhe é atribuído conecta-se ao modo como Agostinho conclui que Cristo é o único mestre de todos (2008, p. 414, XIV.46), de maneira que os signos, embora tenham capacidade de se referir às realidades, não são capazes de propriamente ensiná-las.
Cheung cita dois trechos do De magistro em defesa de suas conclusões ocasionalistas, e, na verdade, ele o faz parcialmente, excluído certas porções relevantes (2005a, pp. 39-40). O primeiro trecho citado é o seguinte, negritadas as partes não citadas por Cheung:
Entretanto, quem me ensina algo é aquele que me apresenta aos olhos, ou a qualquer sentido do corpo, ou também à própria mente, o que desejo conhecer. Portanto, com as palavras não aprendemos senão palavras, ou, melhor, o som e o ruído das palavras; pois se as coisas que não são sinais não podem ser palavras, ainda que eu tenha ouvido uma palavra, contudo não sei que seja palavra enquanto não saiba o que significa. Portanto, conhecendo-se as cosias, completa-se também o conhecimento das palavras; ao passo que, em se ouvindo as palavras, não se aprendem sequer as palavras. Pois não aprendemos as palavras que conhecemos, nem podemos afirmar que tenhamos aprendido as que não conhecemos, a não ser depois de percebermos o seu significado, o que não ocorre pelo fato de ouvirmos as vozes proferidas, e sim pelo conhecimento das coisas significadas. Sem dúvida, é muito verdadeira a consideração e com muita razão se diz que, quando se pronunciam palavras, ou sabemos o que significam, ou não sabemos. Se sabemos, ouvindo as palavras, recordamos mais do que aprendemos; se não o sabemos, sequer recordamos, mas, talvez, somos estimulados a procurar saber o que significam. (AGOSTINHO, 2008, pp. 405, 11.36)
O que está em jogo, no contexto, não é uma discussão sobre o conhecimento em geral, mas sobre certa primazia do significado em relação ao signo. A posição de Agostinho aí não é de que todo e qualquer ensino seja impossível, cabendo a Deus o papel de professor. Ao contrário, o trecho negritado na primeira citação mostra que Agostinho podia conceber que um ser humano ensinasse outro, mas não através de signos, senão através das próprias realidades. O signo seria, por si mesmo, incapaz de ensinar sem a realidade significada, e é essa incapacidade que Agostinho ressalta.
O segundo trecho é o seguinte, também ressaltando a parte não citada do texto:
Sobre as muitas coisas que entendemos consultamos não aquelas cujas palavras soam no exterior, mas a verdade que interiormente preside à própria mente, movidos talvez pelas palavras para que consultemos. E quem é consultado ensina, o qual é Cristo que, como se diz, habita no homem interior, isto é, a virtude incomutável de Deus e a eterna Sabedoria, que toda alma racional consulta, mas que se revela a cada alma o quanto esta possa abranger em função de sua própria boa ou má vontade. E se às vezes há enganos, isto não ocorre por erro da vontade consultada, como tampouco da luz exterior, pela qual os olhos com frequência se enganam; confessamos que consultamos esta luz a respeito das coisas visíveis para que no-las mostre à medida que as possamos ver. (AGOSTINHO, 2008, pp. 406-407, 12.38)
As primeiras palavras delimitam a preocupação fundamental do contexto: “as muitas coisas que entendemos”, isto é, as verdades inteligíveis, não sensíveis. Há nesse trecho um importante paralelismo, obscurecido pela citação incompleta, entre duas consultas: a consulta a Cristo no homem interior e consulta à luz exterior. Segundo Agostinho, ambas consultas são reais, são descrições de processos reais. Trata-se aqui, portanto, da repetição da distinção entre duas modalidades de conhecimento, um inteligível e o outro sensível. Longe de apresentar uma doutrina diferente, aqui se vê o mesmo que foi dito, com maior clareza, no De trinitate, confirmando a ligação da doutrina da iluminação ao conhecimento inteligível, ao passo que o conhecimento sensível, no caso da visão, estaria ligado à luz natural e literal.
Ao contrário da observação de Cheung, os trechos citados não são a conclusão do raciocínio de Agostinho. Na verdade, logo em seguida Agostinho confirma mais uma vez a distinção entre as duas modalidades de conhecimento:
Se, no que diz respeito às cores, consultamos a luz e, no que diz respeito às outras coisas que sentimos através do corpo, consultamos os elementos deste mundo e os mesmos corpos que sentimos e os próprios sentidos, dos quais a mente usa como intérpretes para conhecer tais coisas; porém, a respeito das coisas que se conhecem pela inteligência, consultamos a verdade interior por meio da razão; como se pode dizer com clareza que comas palavras aprendemos algo além do próprio som que repercute nos ouvidos? Pois todas as coisas que percebemos, percebemo-las pelos sentidos do corpo ou pela mente. Aquelas denominamos sensíveis e estas inteligíveis ou, para falar conforme o costume de nossos autores, aquelas denominamos carnais e estas espirituais. (2008, pp. 407, 12.39)
O paralelismo aí reaparece: de um lado, a luz consultada quanto ao conhecimento sensível; do outro, a verdade interior quanto às coisas que se conhecem pela inteligência. Agostinho respeita a mesma distinção já observada em outras obras, e mantém sua teoria ativa da percepção (“a mente usa como intérpretes”). De fato, Agostinho usa também a linguagem da iluminação: o conhecimento das coisas inteligíveis se daria através da “luz interior da verdade”, uma revelação divina interior (ibid., p. 409). Assim, não há evidência, nos trechos mencionados, de qualquer ocasionalismo.
CONCLUSÃO
O estudo comparativo entre as apresentações da teoria da percepção, a propósito da epistemologia, no De Trinitate, no De magistro e noutras obras, mostra uma constância essencial da posição agostiniana. O doutor de Hipona, nessas obras, (1) distingue entre o sensível e o inteligível, (2) assinala o papel ativo da alma na percepção, (3) sustenta a doutrina da iluminação — divina no conhecimento inteligível, natural no conhecimento sensível. Sua posição em nenhum momento tende a uma negação do nexo causal entre o conhecimento sensível e os próprios objetos dos sentidos. Observa-se, portanto, ampla continuidade na temática abordada, questionando, portanto, a relevância da interpretação ocasionalista a que Cheung submete a obra de Agostinho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGOSTINHO. Contra os acadêmicos, A ordem, A grandeza da alma, O mestre. Trad. Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008.
AGOSTINHO. A Trindade. Trad. Augustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1995.
CHEUNG, Vincent. Questões Últimas. Trad. Felipe Sabino de Araújo Neto. 2005a. Disponível em: <http://www.monergismo.com/textos/livros/questoes_ultimas_livro_cheung.pdf> Acesso em: 08 nov. 2019.
CHEUNG, Vincent. Ocasionalismo e Empirismo. Trad. Felipe Sabino de Araújo Neto. Felipe Sabino de Araújo Neto. 2005b. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/apologetica/ocasionalismo_empirismo_cheung.htm> Acesso em 08 nov. 2019.
COUTINHO, Gracielle Nascimento. A construção do conhecimento sensível em A Trindade de Santo Agostinho. Kínesis, vol. 4, n° 07, julho 2012. Disponível em <https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis/graciellenascimentocoutinho1-16.pdf>. Acesso em 10.11.2019
GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de santo Agostinho. Trad. Cristiane Negreiros Abbud Abyoub. 2. ed. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2010.
Notas:
1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Sul Americana.
2 Por uma questão de consistência estilística para com as fontes citadas ao longo deste artigo, as obras de Agostinho de Hipona serão nomeadas em conformidade com o título original ou tradicional latino: De magistro (O Mestre), De quantitate animae (A Grandeza da Alma), De Trinitate (A Trindade), embora os nomes constem, na bibliografia, em conformidade com a versão em português usada.
3 Note-se que aqui, como de resto, Agostinho privilegia o sentido da visão, como análogo mais próximo da inteligência. Seria um pouco mais difícil, para ele, encontrar o mesmo um meio equivalente ao da luz natural em todos os outros sentidos.